sexta-feira, 17 de agosto de 2012

“A decisão mais marcante do Conselho de Ministros que eu dirigi foi a recusa da liberalização da indústria do caju”

Terça, 19 Junho 2012 00:00 Olívia Massango
Mário Machungo
Mário Machungo, licenciado em economia, em 1969, em Lisboa, destacou-se na vida política no Governo de Transição, ao ocupar a pasta de ministro da Coordenação Económica.
Desde então, passou por vários ministérios até chegar ao cargo de primeiro-ministro (1986-1994), o último no governo. Falando da sua experiência, Machungo considera que, perante a saída em massa dos comerciantes portugueses, a criação das lojas do povo foi a solução adequada para a altura. Conta ainda que quando o país muda de modelo económico, o Conselho de Ministros que dirigia recusou a liberalização da indústria do caju, aceite no governo que lhe sucedeu. Mais: diz que não foi correcta a privatização de todos os serviços do Banco Popular de Desenvolvimento, mas, quando deu a sua opinião, não foi acolhida.
Mário Machungo é natural de Maxixe, província de Inhambane. tal como alguns moçambicanos, fez o ensino superior em Lisboa, na década 60 (1969). Quando é que parte para Lisboa? 
Parto para Lisboa em Outubro de 1959, depois de concluir a secção preparatória na Escola Comercial para matrícula no Instituto Comercial. Parto para Lisboa para frequentar o Instituto Comercial Preparatório, para o ensino superior, no curso de Economia.
Estando em Lisboa, quando é que ouve falar da Frelimo?
Ouvi falar da Frelimo depois de 1962, após a criação da mesma. Ouvimos dizer que a Frelimo se formou, tínhamos uma frente de libertação que ia também iniciar a luta de libertação nacional, na altura já tinha iniciado a luta pela libertação em Angola. na Guiné, também já havia uma luta acesa. Sentimo-nos confortados em saber, também, que no nosso país os nacionalistas se tinham organizado para iniciar a luta pela libertação nacional.
Na altura em que deixou Moçambique, tinha conhecimento das aspirações de alguns moçambicanos em levar avante a luta contra o regime colonial?
Quando saí de Moçambique, em 1959, havia moçambicanos que tinham consciência de que era preciso fazer alguma coisa para a libertação de Moçambique. Vou recordar que, por exemplo, o saudoso Filipe Samuel Magaia, uma pessoa que muito respeito e admiro, foi a primeira pessoa que falou de Kwame Nkrumah. Mostrou-me uma revista que tinha a fotografia de Kwame Nkrumah, grande dirigente de um país africano independente. Aí soube, pela primeira vez, que também os africanos podem dirigir os seus países. Depois, ele foi-nos trazendo notícias do que estava a acontecer no continente africano, em termos de movimentos de libertação nacional.
Estando em Portugal, como é que acompanhava a vida política do país, sobretudo as acções da Frelimo?
Em Portugal, estávamos organizados, tínhamos contactos clandestinos com a Frelimo. Recebíamos notícias, os boletins que se publicavam em Dar-es-salaam, apanhávamos as emissões das rádios estrangeiras que falavam da nossa luta. Estando em Portugal, não era fácil, tínhamos que encontrar mecanismos de receber informações clandestinamente, porque, se fôssemos apanhados, estaríamos sujeitos a ser presos.
Teve algum contributo para a luta nessa altura?
Nós estudantes que estávamos, nessa altura, na Europa, Portugal nomeadamente, fazíamos o que eram instruções da Frelimo para mobilizar os estudantes, para poderem ter consciência do que é que se estava a fazer para a luta. E, depois de acabarmos os nossos estudos, tínhamos que nos juntar à luta ou fazermos outro trabalho à favor da luta de libertação.
Acreditava no sucesso desta luta?
Tínhamos que acreditar, era inevitável. Acreditávamos profundamente. Se os outros fizeram, por que é que nós não havíamos de fazer?
Terminou os estudos em 1969, no auge da luta de libertação nacional. Dizia que tinham essa consciência de que, terminados os estudos, tinham que se juntar aos guerrilheiros da Frelimo, e, juntamente com eles, combater o regime colonial. O que é que fez nessa altura?
Vou dizer uma coisa que, praticamente, pouca gente sabe. Nessa altura, procurei força e saí de Portugal. Não era fácil sair de Portugal. Saí de Portugal, fui à Suécia encontrar-me com o camarada Marcelino dos Santos, acompanhado do camarada Panguene, para dizer que estava pronto. Ele disse volta para Moçambique, que a luta é dentro de Moçambique. Voltei em 1970 e trabalhei para o Banco de Fomento. O processo não era fácil. Como sabe, a Frelimo assumiu o poder em 1975, após os acontecimentos de 7 de Setembro de 1974, depois de uma recusa de um grupo de colonos portugueses, que recusavam a independência de Moçambique, e a economia de Moçambique estava fragilizada. Havia uma grande sabotagem económica, de modo a que o conjunto de moçambicanos que tomou a transição não teve uma tarefa fácil. Felizmente, a experiência de mobilização da Frelimo fez com que mobilizássemos todo o povo, desde operários, camponeses, para resistirmos às ofensivas de sabotagem económica e dirigirmos o país de modo a chegarmos em 1975 em condições, para proclamarmos a independência em condições não tão gravosas como aquelas que os nossos inimigos queriam.
Aquando da assinatura dos Acordos de Lusaka, tinham consciência da realidade dura e complexa que iriam encontrar?
Tínhamos. Nós acompanhávamos a economia portuguesa, as dificuldades. Sabíamos que não íamos encontrar uma situação boa, sobretudo do ponto vista económico. A economia estava degradada. Havia muita fuga de capitais para a metrópole naquela altura. A situação estava de facto muito periclitante. 
A 29 de Junho de 1975, o Presidente Samora Machel assinou um decreto de nomeação do primeiro Conselho de Ministros da então República Popular de Moçambique. Nessa altura, passa a ocupar a pasta de ministro da Indústria e Comércio. Que desafio encontrou neste cargo, tendo em conta que o país ainda estava num processo de organização, sem políticas de desenvolvimento definidas?
O primeiro desafio era controlar a sabotagem económica que estava em curso, e muito intensa. As fábricas e máquinas eram sabotadas; o gado era levado para fora. Havia uma situação gravosa. Os nossos trabalhadores tinham sempre de andar atrás dos acontecimentos, para evitar a degradação do processo da máquina de produção no país. Esses eram os grandes desafios. Mas conseguimos, felizmente, porque os trabalhadores, os moçambicanos, tinham consciência de que tinham que defender o seu património para poderem sobreviver. Foi uma situação muito grave. Não tínhamos experiência, pelo menos da minha parte, de dirigir um ministério (...) tivemos de aprender a fazer as coisas fazendo. Dizia, por exemplo, Samora que “nenhum de nós foi para escola para aprender a ser ministro. Temos de aprender a nadar nadando”. e foi assim que aconteceu.
Em 1977, a Frelimo organiza o III congresso, onde traça várias políticas de desenvolvimento, as directivas económicas e sociais, como a colectivização dos campos, visto que cerca de 80% da população vivia da agricultura e havia necessidade de promover uma produção agrícola mais intensa, e, igualmente, olhar para esta forma de organização social como uma forma de desenvolvimento rural. Como membro sénior do Governo (ministro da Indústria e Energia), qual foi o seu contributo na definição desta estratégia?
A estratégia foi definida em conjunto no Conselho de Ministros. Vimos a situação económica do país, porque é preciso voltar um bocadinho para atrás. No seu discurso, a 20 de Setembro, quando o Governo de Transição tomou posse, o Presidente Samora apelou a todos, mesmo os estrangeiros, que continuassem a trabalhar para a construção de um Moçambique independente, mas esse apelo não foi ouvido. Houve o abandono completo da máquina produtiva em Moçambique, desde as empresas agrícolas a empresas industriais. Foi tudo abandonado. Fizemos um esforço de reorganizar, tínhamos poucos quadros para dirigir o país, formados e com experiência, de modo que demos os passos para podermos reorganizarmos o aparelho produtivo, para podermos manter a produção nos níveis possíveis para manter a economia a funcionar e corresponder às nossas necessidades, abastecer o povo e ganhar divisas para podermos continuar a comprar aquilo de que necessitávamos para a nossa vida. Essa análise foi feita e vimos que era preciso, primeiro, reorganizar as empresas abandonadas em unidades de produção, para, de uma forma centralizada, podermos dirigi-las no seu processo produtivo 
Mas esta ideia de transformar os campos em cidades, de levar os serviços que as pessoas tinham nas cidades para o campo, não era algo fácil?
O  problema foi discutido aqui e sujeito a tantas críticas injustas: o movimento das aldeias comunais, porque o povo, os camponeses, estavam dispersos e trabalhavam para as grandes empresas coloniais agrícolas ou, então, produziam algodão para vender. Com o abandono dessas empresas, o processo de produção do algodão não se tornou prioritário, tínhamos que produzir comida para nós próprios; era preciso providenciar assistência de saúde, escolas, expandir a educação para todo o povo. Não havia escolas, de modo que o Presidente Samora encontrou como saída a organização das pessoas em centros populacionais, aldeias comunais, porque era mais fácil instituir escolas, hospitais, meios de transporte e toda a assistência que era necessária para a população, e era também importante para estimulá-las a formarem cooperativas de produção, em que podiam trabalhar em conjunto aqueles que quisessem. Os que não quisessem podiam trabalhar isoladamente. Para a população poder utilizar os meios mais avançados da irrigação da terra (...) foi por isso que estimulámos a população. Transformámos as grandes empresas agrárias coloniais que existiam em empresas estatais, onde pudéssemos concentrar toda a capacidade existente, para podermos continuar a produção agrícola, isso no campo. Na cidade, nas empresas industriais, procurámos  juntar as empresas conforme as afinidades de produção, em unidades de produção. Unidade de produção têxtil, mecânica, etc., que era para podermos coordenar melhor o processo produtivo sob a supervisão do Estado. Foi a necessidade das circunstâncias que foram criadas que nos obrigou a fazer isso. Tivemos que pedir ajuda aos países amigos, aqueles que nos apoiaram durante a guerra, para podermos levar a cabo a nossa missão
Que obstáculos encontraram para fazer deste sonho uma realidade?
Como disse, primeiro, quadros, mas sabe da história de 8 de Março. Tivemos que formar quadros. Tivemos que encontrar mecanismos para formar quadros. Mandar gente estudar fora e dentro do país para poderem responder melhor às necessidades do país. segundo, com a declaração das sanções à Rodésia, em resposta às decisões das Nações Unidas, sofremos agressão estrangeira (...) tivemos de, a partir de 1976/7, encarar a guerra da agressão, desencadeada pelos países racistas minoritários. Então, tivemos que encarar dois problemas: a formação de quadros que não existiam e enfrentar a guerra e a produção.
Olhando para esta “deixa” de mandar as pessoas para a formação, para encararem os problemas do país, em qual das gerações da Frelimo se enquadra, assumindo que na altura em que iniciava a luta de libertação nacional estava em Portugal e na altura em que o país tinha que formar quadros estava do lado dos que estavam a avançar com esta iniciativa para dinamizar o país. Em qual das gerações se enquadra, 25 de Setembro ou 8 de Março?
Geração dos moçambicanos envolvidos na luta de libertação de Moçambique...
Em 1977, também é traçado o Plano Prospectivo Indicativo, desenhado para impulsionar o desenvolvimento, na década 80 (ministro da Agricultura 78-80). Qual o seu contributo na definição deste plano?
Era ministro do Plano, recebi a missão do Comité Central para elaborarmos o Plano Prospectivo Indicativo para corresponder ao plano de luta contra o subdesenvolvimento em 10 anos. Não era uma tarefa fácil transformar o país subdesenvolvido em 10 anos. Fizemos um plano racional e coerente, de realização difícil, mas possível.
Quais foram os grandes sucessos desse plano?
O grande sucesso foi mobilização total do povo que acreditava que era possível transformar o país. Fizemos algumas obras nesse sentido. Há coisas que foram feitas neste país resultantes do Plano Prospectivo Indicativo e tínhamos ideia, todos, de por onde é que íamos e como é que havíamos de ir. Chegava-se a uma fábrica e perguntava-se a qualquer moçambicano “olha, quais são os produtos estratégicos para exportação?”. Ele respondia: “Olha, quais são os produtos estratégicos para abastecimento do povo?”,  dizia. Cada fábrica sabia qual era a sua tarefa de produção numa semana, duas e num mês. Quais são as suas metas de produção. E havia estímulos para os trabalhadores. e mais: a vontade de produção era tal que chegámos a inventar forças ocultas entre nós. Vou contar, se me permite, um episódio que acho que vale a pena contar. Com a tentativa de isolamento do nosso país desencadeada pelos regimes minoritários da região, a indústria açucareira do país, que no passado mandava ratificar os rolos de açúcar de Muende, na África do Sul, não podia mandar para África do Sul (...) fizemos uma reunião com os trabalhadores todos a dizer como é que iríamos fazer rolos. Os trabalhadores disseram “Sr. Ministro, é possível”. É possível como? “Vamos vazar o ferro”. E havia engenheiros jovens que diziam “não é possível, é preciso saber a temperatura do ferro”. Ouvi-os a discutirem e um dos operários disse “não.  eu trabalho aqui há muitos anos. Basta pôr a mão assim, já sei mais ou menos qual é a temperatura do ferro”. Olha, acreditámos naquelas pessoas e nenhum rolo foi para o estrangeiro para ser ratificado, foram todos vazados aqui e a campanha de açúcar foi salva.
Mas, para o sucesso do Plano Prospectivo Indicativo, várias barreiras colocaram-se, principalmente na década 80, com a pressão da guerra de desestabilização, a fome, as calamidades naturais, sobretudo na região sul do país. Isto obstruía o plano de desenvolvimento traçado e forçou o Governo a abandonar o modelo de economia centralmente planificado para a economia de mercado. Como é que viveram esses momentos?
Na década 80, os desafios tornaram-se cada vez maiores para o governo da Frelimo. Houve pressão vinda da guerra de desestabilização, e, ao mesmo tempo, a fome, as crises cíclicas decorrentes de calamidades naturais, chuvas, cheias, secas... que obstruíam.
Qual foi o nível de influência de Mário Machungo para essa viragem?
Disse bem uma palavra: a guerra de desestabilização, que tinha como finalidade impedir que o país realizasse o seu projecto conforme o que queria. Porque realizar o seu projecto conforme o que queria era uma ameaça para os países racistas vizinhos. Era mau exemplo ver um país negro aqui fazer aquilo que queria e com um alto nível de realização. É por isso que sofremos a guerra de desestabilização. Esse é o primeiro grande factor. Não é o modelo que estava errado, o que estava errado eram os vizinhos que não queriam este modelo. Era uma ameaça para a sua própria sobrevivência e nós não podíamos, evidentemente, sempre, lutar contra um vizinho poderoso. Tínhamos que encontrar mecanismos de fugir a uma agressão tão forte. Foi por isso que fizemos um bocadinho de desvio: deixámos de uma economia centralmente planificada, porque, enfim, as condições também não estavam muito maduras para fazermos uma economia completamente planificada. É preciso criar forças produtivas muito fortes e termos uma relativa centralização, com capacidade para criar planos a nível local e integrá-los, depois, no plano global. Isso tudo precisava, de facto, de um grande trabalho e, com a agressão, tornava-se ainda muito difícil. Então, decidimos deixar de termos uma economia centralmente planificada, descentralizamos um bocadinho. Entregámos alguns sectores ao sector privado (...). O Presidente Samora Machel, num comício, chamou atenção a dizer que o Estado não podia continuar a vender agulhas, candeeiros, tudo, tínhamos que deixar  aquele modelo, porque de facto não era tarefa do Estado. Tínhamos que passar a contar com a intervenção do sector privado para podermos levar a nossa economia adiante. O próprio Presidente Samora reconheceu de facto que devíamos relaxar um bocadinho.
E como é que foi para o Presidente Samora Machel reconhecer que o modelo económico que o país estava a seguir não estava a responder àquilo que eram os problemas do momento e que a solução passava por aderir às instituições de Bretton Wodds?
Foi  a prática que mostrou ao Presidente Samora e a todos nós que algumas coisas não funcionavam. Quando o Presidente Samora dizia “não é tarefa do Estado vender agulha, candeeiros”, foi a prática que mostrou que quando ia a uma cantina encontrava torcidas, mas não havia candeeiros, nas lojas do povo; encontrava agulhas, mas não havia linhas. Portanto, esta planificação centralizada não funcionou. Foi a prática que mostrou que não tínhamos ainda meios suficientes para dirigirmos uma economia centralmente planificada.
E ao decidir-se que o país tinha que abandonar a economia centralmente planificada para uma economia de mercado, existia a certeza de que estaríamos a optar por um modelo económico acertado?
Ninguém tem certezas absolutas de nada. Dá-se passos e verifica-se se é correcto ou não, dá-se outro passo e corrigem-se erros, e por aí em diante (...) até hoje, ninguém tem certeza de que o modelo de economia que estamos a seguir, liberalismo económico absoluto, serve. Não serviu. Mas houve pessoas, quero recordar, quando estava no governo, nós já estávamos nas instituições de Bretton Wodds, que apareceram vindo de instituições internacionais, chamados os Chicago Boys, que vinham com ideias do liberalismo económico e diziam-nos: “Abandonem este modelo de Estado, tem que ser Estado mínimo. Deixem o resto. A economia privada e o mercado corrigem tudo e vão estabelecer equilíbrio de mercado, dos preços e tudo. Abandonem tudo.” E veio um senhor do Fundo Monetário Internacional dizer “Liberalizar todos os preços”. Tínhamos alguns preços controlados dos produtos essenciais para o povo. E eu disse não. O governo não vai liberalizar todos os preços, porque isso, imediatamente, vai afectar severamente o nosso povo (...) e disse-lhes que, a exemplo dos outros países que fizeram a liberalização de produtos, de bens essenciais, haveria greves, revoltas e tudo, se os preços dispararem sem controlo. Chegaremos lá. Temos o nosso passo para tal. Mais: chegaram e disseram “vocês têm de liberalizar tudo; privatizar tudo de uma só vez”. E dizia-me o senhor “para grandes doenças, grandes remédios”. Eu disse “olha, nós não aceitamos morrer de gula, vamos seguir o passo”.  E disse: “Se vocês não querem aceitar, então, não vão ter apoio das instituições”. E eu disse: “Se não vamos ter apoio das instituições, o povo saberá defender-se”. Fui dizer ao Presidente Samora e ele disse vamos fazer um comício popular e vamos dizer “Não recebemos o apoio que era necessário, temos que saber sobreviver com os nossos próprios meios”. Dois meses depois, aceitaram fazer o plano como nós queríamos.
Foi uma estratégia que resultou...
Não uma estratégia, foi conhecimento da realidade. Não se pode impor soluções estranhas a um povo. O povo tem, também, as suas soluções. Foi a lição que eles também tiraram.
Mário Machungo ocupou a pasta de ministro do Plano, de 1980 a 1986. Inácio Nunes, militante da Frelimo, diz que o governo da Frelimo não organizou quadros para gerir as lojas do povo, e elas não responderam à grandeza das necessidades, por isso Samora recuou da decisão. Qual foi sua influência e visão sobre esta iniciativa?
A rede comercial que existia no tempo colonial foi completamente destruída, primeiro, pelo abandono dos cantineiros, segundo, pela guerra. Era preciso que os camponeses que estavam nas zonas rurais continuassem a ter  instrumentos para o seu próprio abastecimento. Não vamos longe, aqui mesmo na cidade, em Chamanculo, Malhangalene, com o 7 de Setembro, todas as cantinas foram destruídas e abandonadas. E era preciso haver alguém... e não havia nessa altura empresários moçambicanos, porque não estavam habilitados. No tempo colonial era proibido aos moçambicanos exercerem actividade empresarial privada. Obter uma licença para abrir uma cantina ou desenvolver uma actividade empresarial, o moçambicano não conseguia. Tudo era feito por estrangeiros. E a formação de um empresário não se faz de um dia para o outro. E como é que haveríamos de resolver estes problemas todos. Então, fizemos aquilo a que se chama lojas do povo. Como? Aglutinando alguns quadros minimamente formados para gerir essas cantinas. Nós fomos reabrindo as cantinas abandonadas para assegurar o abastecimento ao povo. E foi isso: contar com as nossas próprias forças para resolver os nossos problemas. E o nosso critério era procurar saber se a pessoa tinha alguma formação, 4º ou 5º ano, e mobilizar para o trabalho.
Mas as lojas do povo não conseguiram responder aos objectivos da sua criação. A fome existia, os produtos não eram devidamente distribuídos...
De certo modo vieram a responder. Isto era um processo de planificação tão complexo, que exigia uma organização muito grande. Chegámos ao ponto de encontrar lojas que tinham torcidas, mas que não tinham candeeiros, e outras que tinham candeeiros, mas que não tinham torcidas... por isso, o Presidente Samora chegou à conclusão de que talvez seria melhor ir deixando o sector privado com a tarefa de exercer essa actividade económica, que é ter loja para o abastecimento do povo. Muitos deles foram aqueles que tiveram prática na gestão dessas lojas e tornaram-se empresários.
Isso para dizer que não foi um erro?
Não foi completamente um erro. Foi a solução adequada para a altura, não havia outra solução. Se não, teríamos que importar empresários estrangeiros para nos dirigir.
Em 1986, ocupa a pasta de primeiro-ministro de Moçambique, curiosamente, o primeiro no cargo. Nesta altura, já era evidente a necessidade de mudança do modelo económico e Mário Machungo foi um dos agentes da mudança. Qual foi a sua contribuição na elaboração e implementação do Programa de Reabilitação Económica (PRE)?
A minha contribuição como primeiro-ministro foi dirigir toda a economia nacional. Nós criamos um corpo de coordenação da economia que se chamava Estado Maior da Economia, em que todos os ministros da área económica tinham assento, que era para coordenarmos as nossas actividades. Ainda assim, tínhamos o nosso plano Estatal Central, que tinha como objectivo realizar as tarefas principais da economia, que era imperativo ou de realização obrigatória. Foi assim que fomos prosseguindo, até chegarmos a um ponto em que tínhamos que dar mais um passo para a economia de mercado, privatizar alguns sectores...
Neste momento de transição, qual foi a decisão mais marcante que tomaram?
É difícil dizer qual foi a decisão mais marcante que o Conselho de Ministros que eu dirigia tomou. Mas posso dizer que foi a recusa da liberalização do sector da castanha de caju. Vieram dizer que “porque o comércio é livre, vocês não podem impor, tem que se liberalizar”. Não liberalizámos, porque nós temos experiência da indústria da castanha do caju, do processamento da castanha do caju e quem vai sofrer são os camponeses. Portanto, recusámos.
Mas, mais tarde, vieram a aceitar?
Vieram os outros. Aceitaram e matou-se a indústria da castanha do caju. Portanto, a decisão mais marcante do Conselho de Ministros que eu dirigi foi a recusa à liberalização da indústria do caju.
Quando Moçambique decide mudar o seu modelo económico para uma economia de mercado, teve que, igualmente, incentivar o surgimento de uma classe empresarial.  Qual foi a estratégia?
Criámos várias instituições para o efeito. Criámos o GAPI, que era uma organização para o financiamento às Pequenas e Médias Empresas; criámos também o Instituto de Apoio a Pequenas e Médias Empresas; criámos a Caixa de Crédito Agrícola e Desenvolvimento Rural; criámos um conjunto de instituições para o apoio ao sector empresarial emergente. E funcionou. Apoiou o surgimento de muitas empresas, na área de avicultura, agricultura, carpintaria, etc.
O PRE significou uma viragem muito profunda para a banca nacional.  Os bancos deviam começar a avaliar a concessão de crédito na base de mérito, com a excepção de algumas empresas estatais que tinham um funcionamento e uma importância muito grande para a economia. Mas sabe-se que, até 1995, ainda existia muita atribuição de crédito sem muito rigor, tanto ao nível do Banco Comercial de Moçambique (BCM), como ao nível do Banco Popular de Desenvolvimento (BPD). Quais foram a razões de fundo: proteger a emergência da classe empresarial ou evitar falência das empresas para garantir emprego?
Em 1994, eu saí do Governo. E, até 1994, o que posso dizer é que as empresas estatais, algumas que existiam, continuavam a ter o apoio financeiro da banca estatal para manter o emprego e para manter o funcionamento da economia. Era esse o critério. Até eu sair do Governo, os bancos ainda não estavam privatizados. Existiam apenas bancos estatais. Porque nós lançámos uma campanha ao nível internacional para a criação de novos bancos. E não houve resposta. Até 1994, não veio nenhum banco a querer criar um banco privado. E mesmo na possibilidade que nós demos de privatização, não houve nenhuma proposta para aquisição de um banco privado. Então, continuámos com bancos estatais, direccionados a apoiar o sector estatal. Os primeiros bancos privados surgiram em 1995 e tiveram uma outra maneira de abordagem de mercado. E os bancos estatais, a partir de 1995, foram sendo privatizados, alguns. O Banco Comercial de Moçambique, para dizer a verdade, não foi bem privatizado, não foi privatizado dessa maneira, foi outro processo.
O Banco Popular de Desenvolvimento não escapou à onda de privatização. Valeu a pena?
Eu digo-te seguramente que não. Eu já não estava no governo, estava noutro banco, no Banco Internacional de Moçambique. A privatização do Banco Popular de Desenvolvimento, como foi feita, não foi correcta. A privatização do Banco Popular de Desenvolvimento podia ter sido feita de outra maneira, que resalvasse as funções do banco de desenvolvimento que eram exercidas pelo Banco Popular de Desenvolvimento, e privatizar, talvez, as outras funções que o banco exercia, como o de banco de retalho. Privatizar tudo não foi muito correcto. Havia coisas que precisavam de uma reflexão muito grande. O resultado foi este: onde parou o BPD? Onde parou o Banco Austral? Depois teve aquele processo todo de falência, depois vieram intervenções de fora, etc., etc.. Deixámos de ter um instrumento muito importante de intervenção na economia rural, que era o BPD, por causa da sua privatização, porque as pessoas que compraram o banco já não estavam interessadas em intervir na economia rural.
Qual foi o seu contributo para impedir que se avançasse com essa privatização?
Eu estava fora do governo e não podia contribuir em nada. Não tinha força nenhuma. Podia dar uma opinião e dei. Disse que não concordava com a privatização do Banco Popular de Desenvolvimento da forma como estava feita. Não foi acolhida e o resultado viu-se.
Hoje, passados mais de 20 anos, que lição tira dos dois modelos económicos, em termos de  vantagens e desvantagens?
Os modelos económicos, uns tinham vantagens e outros não tinham. Nós tínhamos um modelo económico com características de Estado Social. Um Estado que tinha a preocupação de responder às necessidades do povo, um Estado inclusivo. Isto era uma coisa muito importante. O modelo que nós, depois, adoptámos era de um Estado que não era inclusivo, um modelo extremamente individualista, onde cada um vive de acordo com as suas capacidades de intervir no mercado, etc. Os conceitos de solidariedade que prevaleciam no modelo anterior  foram todos perdidos e as questões da pobreza, da degradação dos níveis de ensino, do atendimento ao nível da saúde foram mais gravosas no modelo que se adoptou depois, do que no modelo primitivo.
Mário Machungo testemunhou vários projectos de combate à pobreza do governo da Frelimo, desde o PPI, PRE, PARPA, entre outros, mas a pobreza continua sendo um dos grandes desafios do governo da Frelimo. Qual é, de facto, o modelo mais acertado para reduzir os níveis bastante significativos da pobreza no país?
É um bocado difícil dizer qual deve ser o modelo mais acertado. É vermos as experiências do passado e vermos como podemos juntá-las para prosseguirmos para o futuro. Na agricultura, deixar de considerar a agricultura como base  para o desenvolvimento é um erro. A agricultura sempre foi a base para o desenvolvimento. Foi e vai continuar a ser.
No discurso político, isso é uma realidade. Mas sente que na prática isso não está a acontecer?
Na prática, pode não acontecer, porque os fundos dedicados à agricultura para a criação de infra-estrutura, etc., não são suficientes. só agora é que estão a surgir alguns esforços no sentido de levar a agricultura a desempenhar as suas funções, ou as funções que nós queremos que desempenhe, para que seja de facto a base para o desenvolvimento económico do país. Eu quero lembrar que, uma vez, quando eu ainda estava no Governo, vieram algumas instituições que diziam “deixem de pensar na agricultura, que ela vai andar por si”. Olha, no campo da comercialização agrária, matamos as Agricons, etc, que bem ou mal eram as instituições que iam ao campo fazer as comercialização agrária. Os camponeses não ficavam com produção por vender. Tinham uma instituição que sempre aparecia e vendia os seus produtos. Não era matar tudo de uma vez, era ver como se podia conjugar o sector estatal e o sector privado para resolver o problema comercial. O sector privado tem as suas preocupações que não são as mesmas com a dos sector estatal, que é o bem público, que o sector privado não resolve. Então, podia muito bem juntar as duas coisas. Nos países vizinhos, existem os chamados bords comerciais, que interferem no apoio ao camponês na comercialização agrária e na compra dos seus sustentos quando não há outros intermediários que comprem os seus excedentes. Não podemos dizer ao camponês produza...  e depois não ter quem compre, e ficar com a produção. No passado, também cometemos esses erros. Houve produções que ficavam com os camponeses, porque a nossa planificação estava incompleta, mas isso foi um erro, não vou dizer que estava correcta. Portanto, não há coisas que sejam absolutamente assim... temos que combinar as coisas no mercado para poderem funcionar e servir os objectivos que nós queremos.
O combate à pobreza continua a ser um dos grandes objectivos do governo da Frelimo. Que conselho é que daria neste momento?
Eu não dou conselhos, mas posso contribuir com a minha opinião. Que me perguntem nesta área ou neste sector, o que se deve fazer. Talvez dê a minha opinião ou diga, não sei.
A Frelimo celebra este ano o 50º aniversário. Como é que descreve este partido ao longo dos 50 anos?
Falar dos 50 anos da Frelimo é uma questão emocionante para mim. Celebrar 50 anos da fundação da Frelimo é evocar a memória de um moçambicano maior. O génio e arquitecto da Unidade Nacional e da moçambicanidade, Dr. Eduardo Chivambo Mondlane. Celebrar o cinquentenário da Frelimo é celebrar o cidadão, parafraseando o grande poeta, José Craveirinha, quando diz “eu sou cidadão de um país que ainda não existe”. Esse cidadão de um país que ainda não existe compreendeu que a emancipação do povo moçambicano tinha de assumir uma forma nova, para ser vitoriosa. Celebramos o líder que compreendeu os insucessos das lutas das resistências contra a ocupação estrangeira do nosso país, que a formação pelos nacionalistas moçambicanos do movimento de combate e de resistência à dominação exigia uma nova abordagem, para transformar os insucessos e as debilidades em sucessos e vitórias. Essa reflexão conduziu à organização de esforços para a agregação das forças dos movimentos nacionalistas moçambicanos numa única organização, com capacidade para mobilizar todo o povo, independentemente da sua origem social, raça, ideologia e crença religiosa, e criar, acima disso, nesta diversidade, um povo unido por uma única organização, a Frelimo, à volta de um objectivo comum: lutar contra a ocupação estrangeira; esta visão, este acreditar no povo unido, este génio de saber organizar a vitória que celebramos este ano. Celebrar os 50 anos da criação da Frelimo é, também, exaltarmos os moçambicanos que sacrificaram o seu conforto e o seu bem-estar para se dedicarem à tarefa sagrada de libertar a pátria, para uma independência total e completa. Celebrar os 50 anos é curvarmo-nos perante a memória imortal do Dr. Eduardo Chivambo Mondlane. Celebrar os 50 anos da criação da Frelimo é prestar uma justa homenagem a todos os que corresponderam ao apelo de Mondlane. seguiram os seus passos e aceitaram sacrifícios que a luta impunha, galvanizados pela palavra de ordem de Mondlane: “a luta continua”.  Celebrar os 50 anos é evocar a epopeia que nos conduziu de 25 de Junho de 1962 a 25 de Junho de 1975 e nos legou novas responsabilidades, novas tarefas e desafios, nas novas frentes de luta pela independência económica e consolidação da nossa consciência nacional. É isso que eu considero que é celebrar os 50 anos
Mário Machungo dedicou 20 anos (1974-1994) da sua vida adulta ao governo da Frelimo. Como perspectiva este partido no futuro?
Eu penso que é pouco para aquilo que o povo ou que a nação precisa, para nós darmos a solução dos problemas que o país enfrenta...

Sem comentários: