sábado, 18 de agosto de 2012

Da Reserva do Niassa ao assassinato de Gilberto Vicente

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Por Maria de Lourdes Torcato *
Num dia, a notícia chocante de 12 elefantes abatidos na Reserva do Niassa, provavelmente por caçadores furtivos; no dia seguinte outra noticia muito mais chocante, o assassinato a sangue-frio do ex-Director do Parque do Limpopo, Gilberto Vicente, possivelmente a mando dos interesses na caça furtiva que ele combatia. Duas notícias suficientes para deixar abalado e preocupado quem acompanha o estado de conservação da Natureza em Moçambique.
Comecemos sempre por lembrar que, quando o estado declara uma determinada porção do seu território como Área de Conservação da Biodiversidade, deve pensar em primeiro lugar nas pessoas que lá vivem. Por exemplo, se é um local privilegiado para proteger a biodiversidade, os animais do mato têm de andar à solta...e os humanos devem ser afastados e protegidos contra eles. O ideal é que não haja pessoas a viver dentro da área de uma Reserva de Conservação e a maioria dos estados segue essa regra. Num país pobre e sobretudo quando a Reserva ocupa enormes extensões do território como é o caso da Reserva do Niassa – que da sua extensão retira as suas extraordinárias vantagens comparativas em termos de conservação da natureza – há muitos problemas que surgem. Mas embora estes problemas sejam complexos e exijam alto grau de organização, eles nunca podem ser um obstáculo às actividades de Conservação e de Turismo.
Numa Reserva dedicada à conservação, sempre que possível e não represente perigo de vida, os residentes dentro ou em zonas limítrofes da Reserva, devem poder continuar a beneficiar dos recursos naturais disponíveis e que tradicionalmente são utilizados na sua vida quotidiana, na construção de habitações com materiais retirados da floresta, na alimentação ou na medicina natural. É óbvio que o devem fazer no respeito da lei e das normas da comunidade e da própria conservação porque, pobres ou ricos, educados ou iletrados, todos temos acima de nós as leis que nos governam. Aliás, como compensação para uma possível perda de acesso a estes recursos causada pelas actividades da Conservação e Turismo, está legalmente estabelecido que as comunidades recebem 20% dos rendimentos obtidos pelas actividades comerciais legais dentro da área da Reserva.
Mas a floresta e os seus recursos numa Reserva não se destinam primariamente a ser explorados comercialmente porque no ordenamento territorial há outras áreas reservadas a isso. A Província do Niassa tem um excelente Zoneamento (de Actividades para o Desenvolvimento) elaborado por especialistas e feito na perspectiva de colaboração da RN com o Governo. Mas apesar disso persiste uma grande confusão nas cabeças de muita gente em matéria de investimento, uso dos recursos, etc. As autoridades administrativas locais partilham desta ignorância ou ignoram apesar de saberem. Mas são poucos os que se evidenciam pela atitude correcta e responsável de lidar com a Conservação, o Turismo e a Governação, servindo o desenvolvimento humano. Isso implica uma estreita cooperação com os gestores da conservação, os agentes económicos e as comunidades, sempre ao serviço dos seus interesses que necessariamente são comuns. Infelizmente há sempre quem prefira pescar em águas turvas com obscuros desígnios.
A Reserva do Niassa é um desses lugares onde os conflitos entre os de má fé e os outros estão constantemente a importunar as nossas consciências. Como amiga da Reserva do Niassa procuro actualizar a minha informação sobre a sua situação particular e acedo a uma série de documentos nomeadamente um relatório da última contagem aérea de animais levado a cabo pela Sociedade de Gestão da Reserva do Niassa entre Setembro e Outubro do ano passado. Apesar de todas as ameaças que rondam insidiosamente sobre uma das mais interessantes áreas de conservação da biodiversidade no mundo, os números obtidos pela contagem são animadores. Citando o relatório, “os resultados mostram um aumento significativo geral na maioria das espécies individuais desde 1998. A estimativa dos elefantes aumentou embora se tenha mantido estável nos últimos 3 anos. Nenhuma das espécies mostra declínio.
A ilegalidade à solta
Mas...as ameaças não estão afastadas, muito pelo contrário, como pude ver noutros documentos. O mesmo relatório constata que “aumentaram os indícios de actividades ilegais, incluindo a colocação de armadilhas, o abate de madeira e a caça ilegal de elefantes.” Noutro documento lê-se que “Em 2009 ocorreu um aumento significativo das actividades de caça furtiva. A caça furtiva aos elefantes na zona Leste da Reserva registou um grande aumento, tendo-se registado um maior impacto na área de Naulala...”
Toda esta actividade inusitada que recrudesceu em 2009, é ligada pelos especialistas ao comércio ilegal especialmente do marfim.
Têm vindo a ser publicadas notícias que atestam isto mesmo. É por isso que o assassinato de Gilberto Vicente, ganha contornos de “crime encomendado” e ele bem pode ser visto como o primeiro mártir da causa da Conservação. Aliás foi este conservacionista quem, em 2008, iniciou a campanha de fiscalização ao abate de árvores em Ngomane, durante o seu período na Reserva do
Niassa. Será que lhe vai ser feita Justiça?
A venda de marfim é banida através do organismo internacional que regula o comércio de espécies em extinção, CITES, e as excepções obedecem a regulamentos muito estritos. Entretanto por causa da escassez do produto o marfim aumentou de preço nos circuitos ilegais e criminosos – pode mesmo falar-se em redes de crime organizado – e daí o aumento da caça furtiva nas zonas de conservação.
Uma das vantagens da Reserva do Niassa que opera com limitados orçamentos é, além da pequena mas excelente equipa profissional de trabalho no terreno, as boas relações de cooperação com os operadores turísticos da RN. As concessões para Turismo foram aliás introduzidas para remediar os limitados orçamentos. A partir de 2008 foi concentrado um grande esforço na prevenção de situações do chamado “conflito homem-animal” através de um sistema mais eficiente de aviso e resposta. Nas suas áreas limítrofes, os operadores colaboram com patrulhas de rotina, com presença permanente nas áreas afectadas pelas tentativas de mineração ilegal, no patrulhamento de áreas mais vulneráveis à caça furtiva de elefantes, apoio com avionetas e veículos todo-o-terreno pertencentes aos operadores, colaboração estreita com os fiscais da RN, visando não apenas a caça furtiva mas também o derrube ilegal da floresta para roubo de madeira.
Não admira portanto que se verifiquem agora ameaças, e por vezes concretização de ameaças, à integridade física e à vida de operadores turísticos na área da Reserva do Niassa. Por causa disso já se registaram cancelamentos de safaris e teme-se pelo futuro do Turismo no Niassa. A Reserva não precisa de publicidade, a informação sobre as suas extraordinárias características circula entre os conhecedores a nível internacional sem investimentos especiais de divulgação, nem do país nem da própria Reserva do Niassa.
Mas quem faz essas ameaças? Aparentemente são elementos das comunidades residentes dentro da Reserva. Quem os instiga? Tudo indica que são os interesses investidos por madeireiros ilegais, traficantes de marfim, garimpeiros e toda a casta de perseguidores do dinheiro sujo de sangue, nacionais e estrangeiros, vindos de países exóticos e de países vizinhos.
Regularmente são confiscadas armas de fogo ilegais e são retiradas armadilhas. O aumento destas armadilhas em 2009 foi preocupante: de 196 armadilhas retiradas em 2007, de um pouco menos em 2008, há agora registo de uma subida enorme em 2009 para cerca de 900 armadilhas neutralizadas. Mas também se registou grande aumento na presença de armas de fogo ilegais.
*N A: Criticas e achegas para mtorcato@tdm.co.mz
SAVANA – 10.09.2010

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