sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Guerra Civil e Dinâmica

Análise
Por Simon Muteerwa*



Maputo (Canalmoz) – Na entrevista concedida ao Canal de Moçambique, o Dr. Eric Morier-Genoud referiu-se à questão da guerra civil.
Repete conceitos há muito conhecidos de que a Renamo foi uma criação rodesiana, que era uma oposição qualitativamente inferior. Defende depois a ideia de que até 1984 não havia guerra civil em Moçambique, mas antes uma guerra de desestabilização, alegando que só a partir desse ano é que a Renamo desenvolveu uma dinâmica mais interna.
Na análise que faz da evolução política moçambicana a seguir à independência, Morier-Genoud parte de uma premissa errada pois pretende explicar o surgimento da oposição armada em Moçambique como uma questão ditada do exterior, em decalque da versão oficial da história do nosso país. Morier-Genoud peca por ignorar que antes de a Renamo ter sido fundada, ocorriam, longe das fronteiras com a Rodésia e África do Sul, acções de guerrilha levadas a cabo pelo Partido Revolucionário de Moçambique (PRM) de Amos Sumane. E mesmo antes do aparecimento do PRM, o governo da Frelimo deparou com uma dissidência militar interna que viria ser esmagada na sequência de uma tentativa de Golpe de Estado em Dezembro de 1975.
Se quisermos compartimentar a guerra civil moçambicana em moldes de dinâmica interna, 1984 é definitivamente o ano errado. Os factos conhecidos permitem situar uma tal dinâmica em 1979. Graças a apoios obtidos em 1978 – por sinal, provenientes nem da Rodésia, nem da África do Sul – à Renamo foi possível criar condições para que na segunda metade do ano seguinte pudesse estabelecer-se permanentemente no interior do país, em zonas de Manica e Sofala onde já vinha operando desde 1977. Com efeito, em Agosto de 1979 André Matsangaíce cria a Base Central da Renamo na Serra da Gorongosa. Em Outubro, Vareia Manje, João Fombe e Magurende John estabelecem bases em Mucuti, Mabate e Chinete. Em Novembro, Lucas Mulhanga dirige-se para a Serra de Sitatonga, aí estabelecendo uma base, de onde posteriormente partem colunas comandadas por Mário Franque e Paulo Tobias que se estabelecem em Muxúnguè e Chidoco.
Esta movimentação de forças de guerrilha da Renamo, feita a partir de Odzi, coincidiu com importantes operações militares lançadas pelas tropas do governo da Frelimo, durante as quais Matsangaíce perderia a vida, a 17 de Outubro de 1979. São operações que prosseguem, na região da Gorongosa, até inícios de 1980. Em Junho de 1980, ocorre em Manica, a Operação Leopardo contra a base de Sitatonga.
Portanto, em 1980, e contrariamente ao que o Dr. Morier-Genoud afirma, os sul-africanos não levaram a Renamo para a África do Sul. Em 1980, a Renamo já estava em Moçambique e aqui permaneceu até ao fim da guerra.
Ao invés de outros movimentos de guerrilha que operaram nesta região de África entre as décadas de 60 e 90, a Renamo não beneficiou do mesmo tipo de santuários em países vizinhos, onde normalmente estavam sediadas as direcções desses movimentos e de onde desenvolviam, em liberdade absoluta, acções políticas e diplomáticas, e para onde recuavam periodicamente quadros e efectivos militares, consoante a intensidade das operações de contra-guerrilha. Era também nesses santuários, que feridos e doentes desses movimentos eram tratados em hospitais condignos. Está ainda por contar o drama vivido nas áreas de influência ou sob controlo da Renamo, onde feridos e doentes, tanto civis como militares, aí sobreviveram ou pereceram. Só nos finais da guerra civil é que instituições humanitárias como o Comité Internacional da Cruz Vermelha puderam prestar algum apoio pontual nessas áreas.
Em Março de 1984, quando foi assinado o Acordo de Nkomati, a Renamo já operava em nove das 11 províncias do país. Dois meses após a assinatura desse acordo, a Renamo iniciou a luta na Província de Cabo Delgado, restando apenas a Província de Maputo-Cidade. Estes factos demonstram que a presença da Renamo em quase toda a extensão do território nacional e o seu modus operandi desde os primórdios da sua existência foram corolário de uma dinâmica que, como é óbvio, foi atingida muito antes de 1984. Uma dinâmica que teve, necessariamente, de depender do apoio das populações.
O curto espaço de tempo entre 25 de Abril e 7 de Setembro de 1974 não permitiu à incipiente oposição em Moçambique estabelecer raízes, ou consolidar posições, daí a facilidade com que o governo da Frelimo conseguiu decapitar os partidos políticos que se lhe opunham. Isto iria ditar as circunstâncias como a oposição se veio a reconstituir no exílio, circunstâncias essas que não podem, por imperativo de coerência, ser interpretadas sob perspectivas qualitativas como o faz o Dr. Morier-Genoud, tal como outros académicos, todos eles apostados em retirar ou pôr em causa a legitimidade de quem se opunha a um sistema político cuja essência era a negação de valores elementares que eles próprios nunca abdicaram nos países de onde são originários, mas que ainda hoje questionam o direito dos moçambicanos usufrui-los.
*    Antigo combatente da Renamo