quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Negócio de Luxo

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Negócio envolve membros da PRM, da guarda Fronteira e figuras ligadas ao tráfico de viaturas.
A caça de rinocerontes para extracção do corno constitui um negócio de luxo que envolve tanto civis como membros da Polícia da República de Moçambique (PRM), particularmente da Força da Guarda Fronteira.
Trata-se de um negócio de alto risco, justamente por envolver o recurso a armas de grande calibre. Dados em nosso poder revelam que algumas armas eram retiradas, clandestinamente, do comando distrital de Massingir para a caça de rinocerontes.
A Procuradoria Distrital de Massingir está, neste momento, com vários processos-crime que envolvem agentes da Guarda Fronteira e civis envolvidos na caça furtiva, incluindo altas patentes da polícia. Todas as acções são planeadas a partir do Chókwè, Chibuto e Maputo.
Os factos
Em meados de Fevereiro do ano em curso, uma chamada telefónica desperta-nos para o que a polícia sul-africana já se vinha queixando: o recrudescimento da caça furtiva de rinocerontes, com vista à extracção do corno para a, posterior, venda a cidadãos de origem chinesa e vietnamita. Do corno retira-se mercúrio para fins supostamente medicinais.
A fonte deu-nos os rastos que nos conduziram ao apuramento da verdade, através da obtenção dos processos ora nos tribunais, no Comando-Geral da Polícia e sob domínio do ministro do Interior, Alberto Mondlane.
Cenário de guerra no Kruger park
Na verdade, o que se vive no Kruger Park é um cenário de guerra. Há relatos de dezenas de moçambicanos mortos, de Novembro passado a Julho deste ano.
Por exemplo, a 22 de Novembro do ano passado, a polícia sul-africana anunciou, sem avançar nomes, a morte de dois caçadores furtivos, todos moçambicanos, abatidos pelos “rangers”, guardas do parque nacional Kruger, na África do Sul, e a detenção de um deles.
Os dados em nosso poder, extraídos de um dos processos, ora no Comando-Geral da Polícia e no Ministério do Interior, indicam que um dos caçadores mortos no local é Silva Ngovene e o capturado é Bento Zeca Pequenino, ora nas mãos da polícia da África do Sul. Silva Ngovene é sobrinho de um curandeiro, de nome Mahetabanha, mais conhecido por Profeta.
Para a neutralização de Bento Pequenino e seus companheiros, os “rangers” solicitaram o apoio da polícia e militares da força aérea sul-africana, numa operação especial no interior do Kruger. O pedido de apoio surgiu após se terem descoberto oito rinocerontes mortos, dos quais haviam sido retirados os cornos. Na mesma noite, os caçadores foram localizados, o que culminou na troca intensa de tiros entre o grupo liderado por Pequenino e os guardas, a polícia e os militares sul-africanos. Durante a troca de tiros, dois dos moçambicanos foram mortalmente abatidos (um dos quais é Silva Ngovene) e um capturado, tendo os outros fugidos. Um dos foragidos era Gerson Chaúque, membro da Guarda Fronteira, que acabou sendo morto, no passado dia 10 de Abril, no Kruger Park, em mais uma investida contra rinocerontes.
Bento Pequenino havia sido atingido por balas, daí não ter conseguido empreender a fuga. No local, a polícia sul-africana, auxiliada por um helicóptero, teria recuperado duas das várias armas que estavam nas mãos dos furtivos. Trata-se da problemática Mauser 375 e de uma AK47, ora nas mãos da polícia sul-africana.
“Bento Zeca Pequenino que, neste momento, se encontra sob custódia policial da República da África do Sul (RAS) foi neutralizado fortemente armado, após intensos combates com as forças especiais da África do Sul. Foi capturado após ter sido gravemente ferido e na posse de uma arma tipo Mauser 375 e um outra do tipo AK47, que era usada por um dos seus comparsas abatido mortalmente no local (Silva Ngovene). Um outro furtivo pós-se em fuga com uma outra arma do tipo AK47, atirando contra a polícia sul-africana”, lê-se num dos relatos constantes dum dos processos em nosso poder.
Os ficheiros secretos
Consta que a 26 de Agosto do ano passado, três caçadores furtivos foram emboscados, na zona de Godji, a poucos quilómetros da vila de Massingir, pela Força da Guarda Fronteira de Massingir e pelos fiscais da Twin City, uma empresa que opera no Parque Nacional do Limpopo.
Na ocasião, os caçadores furtivos saíam do interior do Kruger Park, onde estiveram a caçar rinocerontes. Quando foram ordenados para se renderam, dois puseram-se em fuga e o outro entregou-se imediatamente. Trata-se de Luís Xavier, de 43 anos de idade, natural de Inhambane e residente no 1º Bairro – Cubo, em Massingir.
De imediato, iniciou um tiroteio que culminou com a morte de um dos dois que se encontravam em fuga, de nome Hamilton Chihale, natural de Inharrime, em Inhambane. O outro, Moura Valoi, conseguiu fugir, estando em parte incerta até à data. Na altura, os caçadores levavam consigo a arma Mauser Calibre 375 com o número 42666. A arma continha seis munições.
Interrogado, o “furtivo” neutralizado revelou a pessoa que o havia mandado caçar rinocerontes. Chama-se Lourenço Valoi. Este, por conseguinte, foi detido no Comando Distrital de Massingir mediante um mandado de busca e captura emitido no dia 27 de Agosto.
Agentes da Guarda Fronteira no jogo
Em face do recrudescimento da caça do rinoceronte e das informações recolhidas, iniciou-se, ao nível da polícia, o processo de purificação das fileiras. É que as informações indicam haver envolvimento de alguns elementos da Guarda Fronteira no negócio. Na sequência desse processo, foi detido Gerson Chaúque, membro da mesma corporação, para esclarecimentos e “descobriu-se o envolvimento de mais um membro, também elemento da PRM, de nome Borman Henriques”.
Depois, ficou decidido que era necessário ouvir algumas pessoas também implicadas no processo. Trata-se de indivíduos que não fazem parte da corporação. Foi assim que Martins Pequenino, irmão mais novo de Bento Pequenino, residente na Matola, foi solicitado. Na altura, Martins Pequenino encontrava-se hospedado na casa de Gerson Chaúque, natural de Inhambane.
Em declarações, Martins Pequenino, que se identificou como trabalhador da G4S, uma empresa de segurança privada, teria informado que, na altura, ia ter com o comandante Borman e Mahetabanha para que lhe passassem o dinheiro que seria usado para facilitar a soltura do seu irmão (Bento Pequenino) na África do Sul.
Borman negou as acusações e disse desconhecer o jovem Martins Pequenino. No entanto, nos telemóveis de Borman foram encontrados registos de ligações constantes entre ele e Martins Pequenino, incluindo Mahetabanha.
Bento Pequenino é que veio a esclarecer todo o processo, através de um contacto telefónico efectuado pela Polícia de Investigação Criminal moçambicana, a 30 de Novembro do ano passado, para a sua congénere sul-africana. Nesse contacto, Pequenino disse que teria recebido a arma de Borman e de Vembane, este último funcionário de uma padaria localizada na vila de Massingir, a poucos metros do Comando Distrital da PRM.
Na sequência das informação de Bento Pequenino, o Comando do 2º Regimento da Força da Guarda Fronteira comunicou ao comandante distrital da PRM de Massingir a fim de notificar Vembane e Mahetabanha, para comparecerem ao comando da Guarda Fronteira no Chókwè, de modo a que fossem ouvidos em declarações. Entretanto, o comandante distrital da PRM de Massingir, Jacinto Queco, teria rejeitado a ideia, alegando que “cabia a ele ouvir aqueles sujeitos”, porque estavam no território sob sua jurisdição.
Consta que Borman teria sido surpreendido, a 25 de Maio de 2011, por uma equipa de fiscais do Parque Nacional do Limpopo na companhia de caçadores furtivos, em Massingir Velho. Na ocasião, este empreendeu uma fuga, esquecendo-se da sua boina no mato e uma arma do tipo Mauser 375, abandonada a 300 metros do portão do parque.
Por seu turno, Gerson Chaúque negou que tivesse albergado Martins Pequenino, mas admitiu ter hospedado Bento Pequenino, ora detido na África do Sul.
Retirada de armas do Comando da PRM
“O País” sabe que Silva Ngovene, morto no Kruger Park, em Novembro, operava sempre com uma arma do tipo Mauser 458. A mesma tinha sido capturada pela Força da Guarda Fronteira no bairro de Canhane Massingir, na posse de caçadores furtivos e, posteriormente, depositada no Comando Distrital da PRM. A mesma arma viria a ser retirada do arsenal do comando distrital, em meados de Novembro, pelo chefe das operações local e entregue a Mahetabanha e Vembane. Assim, contrata-se Bento Pequenino para usar a mesma arma com Silva Ngovene, na caça de rinocerontes na vizinha África do Sul.
Na noite anterior à última caçada, antes da sua detenção, Bento pequenino e Silva Ngovene pernoitaram na casa de Mahetabanha para receberem bênção do Profeta. Consta que Mahetabanha era certeiro na sua bênção, porque nunca se tinha, antes, reportado caso de caçador morto ou detido, preparado por ele. Depois, Pequenino “teria seguido com Gerson Chaúque, mais conhecido por Atirador” e outros “mandatados por Justice Ngovene, mais conhecido por Nyimpine, procurado pelas autoridades sul-africanas”.
Gerson Chaúque, agente da Guarda Fronteira com a categoria de guarda da PRM, participara, em várias ocasiões, na caça furtiva na vizinha África do Sul, onde “é procurado pela polícia sul-africana”.
“Em Novembro de 2011, Gerson Chaúque foi solicitado pelo sr. comandante distrital da PRM de Massingir a fim de participar num plano de saque de duas armas de fogo de tipo Mauser 375 e 458. (…) nessa data, estava planificada a evacuação de algumas armas para o Comando Provincial da PRM de Gaza”, pode ler-se num outro documento extraído de um outro processo, ora no Comando-Geral da PRM. Segundo o documento, ficou combinado que, aquando do transporte das armas na viatura do comandante distrital da PRM, conduzida pelo próprio, Gerson Chaúque e Tecane, na companhia do agente regulador de trânsito de nome Tomás Zaba e Ladeiro Nhate, intersectariam a viatura do comandante, na Década Vitória – dista cerca de 20 km da vila de Massingir –, donde retirariam as duas armas para o carro de Tecane. E, para disfarçar, colocariam sacos de carvão por cima das armas, de volta a Massingir, onde a Mauser 458 seria entregue a Bento Pequenino e a de tipo Mauser 375, com o número 426660, a Luís Mongue.
Fontes próximas do processo clarificam que a arma neutralizada pelos sul-africanos é Mauser 458 e não 375, conforme foi avançado pela polícia sul-africana.
Mauser 375 retirada três vezes do comando distrital
Trata-se de uma arma recuperada por três vezes num espaço de três anos. Curiosamente, sempre que fosse recapturada era depositada no Comando Distrital da PRM de Massingir. A referida arma foi capturada, pela primeira vez, em 2008, em Pumbe, uma das localidades de Massingir, pela Guarda Fronteira. Na altura, a mesma era transportada numa viatura de marca Isuzu KB 300 DCN357 MP. O caso ainda aguarda pelo julgamento no tribunal.
A segunda vez foi a 26 de Agosto do ano passado, quando a mesma arma foi recuperada na região de Godji, pela mesma Guarda Fronteira e, imediatamente, foi entregue ao Comando Distrital de Massingir.
E finalmente, a 30 de Dezembro de 2011, é apreendida das mãos de Luís Mongue, em Massingir. Mongue viria a ser “solto pelo Sr. Comandante distrital local mediante pagamento de 120 mil meticais, sem o conhecimento do Ministério Público. E questionado o comandante sobre o paradeiro de Mongue, este limitou-se a pedir desculpas ao Ministério Público”, relata-se na “Informação”.
Luís Mongue foi recapturado no dia 12 de Janeiro passado e entregue ao Ministério Público, onde se supõe estar a aguardar o julgamento.
Da Mauser 458 à morte a tiros de Chaúque na África do Sul
Uma outra arma Mauser 458 também foi capturada em 2011 na aldeia de canhane, em Massingir, e, depois, depositada no Comando Distrital da PRM, de onde viria a desaparecer misteriosamente.
Ao que apurámos, em Janeiro do ano em curso, concretamente no dia 7, Gerson Chaúque solicitou ao comandante distrital, ao chefe das operações, ao operador da rádio e ao agente regulador de trânsito que interviessem no sentido de o salvarem da justiça e que, caso não o fizessem, ele iria contactar com o procurador para denunciar todos os casos, uma vez que se sentiria “abandonado à sua sorte”. Perante essa ameaça, os seus colegas teriam-no aconselhado a não denunciar nada e, em compensação, Vembane e Mahetabanha iriam pagar a caução que o tribunal iria fixar.
“O mesmo membro confessa ter usado a arma tipo Mauser 375 com o número 426660 nos meados de Abril de 2011, tendo-lhe sido facilitada pelos agentes Ladeiro e o agente da Polícia de Trânsito (PT)”, escreve-se num dos processos.
Poucos meses depois, Gerson Chaúque volta à caça de rinocerontes, mas desta vez não foi bafejado pela sorte. Foi alvejado mortalmente, no dia 10 de Abril deste ano, no Kruger Park. Fazia parte de um grupo de um exército de caçadores, cinco dos quais mortos durante a troca de tiros.
Investigar caçadores e tornar-se caçador
Durante a investigação, o nosso jornal tomou conhecimento de um caso interessante. Trata-se do caso de Borman Henriques, membro da Guarda Fronteira com a categoria de guarda da Polícia, que se tornou caçador furtivo a partir de uma investigação que estava a fazer aos “furtivos”. Borman envolveu-se com o grupo de caçadores furtivos de Massingir na tentativa de investigar o paradeiro da arma Mauser, desviada do arsenal do comando do II Regimento da Força da Guarda Fronteira de Gaza. Entretanto, ao invés disso, ele acabou corrompido. Ao invés de denunciar malfeitores, passou a colaborar com eles, passando-lhes informações operativas da polícia.
Detidos na Macia
Um outro grupo de caçadores furtivos foi detido, às 00h03 minutos do dia 1 de Março passado, na zona de Incoluane, limite entre as províncias de Maputo e de Gaza. O grupo, que se supõe ser liderado por um agente da Guarda Fronteira, de nome Ilídio Mahunguele, foi detido quando ia a Massingir, onde iria planificação o ataque aos rinocerontes. Fazia-se transportar numa viatura de marca Honda CRV, além de portar uma arma de tipo Mauser com o número 803913 de calibre 375, com 11 munições. Parte dos elementos do grupo encontra-se ainda nas celas do Comando Distrital da Macia. Trata-se de Franque Alberto, de 26 anos, mecânico, residente no 2º bairro de Chókwè; Nelson Chitsungo, de 30 anos, desertor das fileiras da Guarda Fronteira, residente no 3º bairro de Chókwè; e Ilídio Alfredo Mahunguele. Este não foi capturado no local, por se ter escapulido, mas foi detido em Massingir, onde se encontrava afecto. Imediatamente, foi transportado para o comando distrital da Macia. Neste momento, Mahunguele encontra-se, após ter pago uma caução de 30 mil, afecto ao Comando do II Regimento das Forças da Guarda Fronteira, no Chókwè, sob ordens do Comando do Chókwè, onde aguarda o julgamento.
Comandantes exonerados
Na sequência deste “pandemónio”, o comandante-geral da Polícia, Jorge Khálau, decidiu, a partir de Abril, exonerar simultaneamente os comandante provincial de Gaza, Florinda Vasco de Nascimento; distrital de Massingir, Jacinto Queco; e da Guarda Fronteira de Massingir, Alberto Cotela. Este último era tido como um dos comandantes que tanto se batia contra a caça furtiva, sendo que a sua exoneração foi vista como uma forma de o silenciar.
Em contacto telefónico, antes da sua exoneração, Cotela insurgia-se com a prosperidade de alguns jovens de Massingir: “Devia questionar-se a forma como algumas pessoas prosperaram de um momento para o outro sem estar a fazer algo”.
Com os comandantes, também foi substituída toda a corporação de guardas das duas forças policiais de Massingir.
O PAÍS – 08.08.2012

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