quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O PREC SEGUNDO OTELO

O  PREC  SEGUNDO  OTELO


Continuação
 EXP. - Não teve medo que esse movimento, sem intervenção de qualquer força de autoridade, causasse mortes?
 O.S.C. - Era um risco que se corria. Mas, a partir do momento em que as terras estivessem ocupadas, era difícil que os agrários se confrontassem com trabalhadores decididos e armados de caçadeiras, protegidos, ainda por cima, pelo Copcon. E isso, de facto, aconteceu. Rapidamente, isto começou a alastrar, e foram então ocupados um milhão e 200 mil hectares de terras no Alentejo. Mais tarde, o PCP procura cavalgar esta situação e praticamente reivindica ter sido ele a motivar a ocupação das terras, o que não é verdade. Fui eu, no Copcon, que dei esta de1iberação.
 EXP. - Costa Gomes nunca teve uma reunião consigo para lhe chamar a atenção para os excessos do Copcon?
 O.S.C. - Nunca. O Costa Gomes nunca me chamou a atenção para nada, e eu nunca me lembrei de pedir autorização para fazer fosse o que fosse. Contudo, houve algumas decisões que eu achei que eram de tão grande responsabilidade que as discuti no Conselho da Revo1ução ou no Conselho dos Vinte.
 EXP. - 0 Copcon também acabou a prender pessoas por conspiração ou sabotagem económica, por exemplo, em Setembro e Dezembro de 74.
 0.S.C. - 0 prender pessoas foi um aspecto extremamente delicado da nossa actuação. Essa missão foi-me dada especificamente pelo general Costa Gomes e resultou da manifestação da «maioria silenciosa», na véspera do 28 de Setembro. Gente da segunda divisão do EMGFA, a divisão das informações, fingindo ser traficante de armas, teve um encontro, numa garagem, com pessoas interessadas em comprar G3. Foi mesmo apresentada uma viatura carregada com armas. E essas pessoas eram, de facto, de direita ou extrema-direita, ligadas à manifestação da «maioria silenciosa».
 EXP. - 0 único indício que tinham era essa informação de que havia alguém que queria comprar armas?
 0.S.C. - E as ligações existentes, não é ? Depois, a certa altura, eles detectam, também, a tipografia onde foram impressos os cartazes  da «maioria silenciosa». Noutros pontos já havia urna proliferação muito grande de partidos de direita e de extrema-direita... Então, foram feitos assaltos a sedes desses partidos e foram descobertas armas e máscaras. Havia ali uma preparação bélica por parte de forças que, nos bastidores da «maioria silenciosa», empurravam a população para participar na manifestação, que visava dar um apoio muito grande e um reforço ao poder de Spínola.
 EXP. - Costa Gomes chega a ir a Belém pedir a Spínola para cancelar a manifestação, não é?
 0.S.C. - Sim, certo. E o Spínola recusa: «É uma manifestação patriótica.»
  EXP. - Depois, há as barricadas populares nas entradas de Lisboa. E o que leva Spínola a demitir-se na noite do dia 29 de Setembro ?
 0.S.C. – É o próprio Spínola que verifica que está desapoiado, que não tem condições nenhumas para dar continuidade à sua acção. Ele, aliás, já tinha ficado derrotado moralmente com a questão da Independência das colónias, quando fez a dec1aração de 27 Julho. Nessa altura, está perfeitamente isolado, não tem capacidade para levar por diante uma presidência efectiva. É contrariado pelo MFA e, portanto, abandona. E como o Galvão de Melo, o Diogo Neto e o Silvério Marques se tinham cololocado em apoio ao Spínola com a demissão dele caem todos. Só ficam Costa Gomes, os homens da Marinha e mais ninguém.
 EXP. - A escolha de Costa Gomes para Presidente, pelo MFA, é automática ?
 O.S.C. - Claro. Costa Gomes assume naturalmente a Presidência da República em substituição de Spínola, empurrado por nós.
 EXP. - No final de 74, a aproximação das primeiras eleições democráticas é o factor que começa a desagregar a unidade aparente que havia dentro do MFA. 
 E começam a surgir vozes de militares, inclusive, contra a realização das eleições.
 O.S.C. - Não, não. O compromisso de realização das eleições, no máximo um ano após o 25 de Abril de 74, estava assumido e tínhamos de o levar por diante. Claro que se fariam as eleições, mesmo que houvesse gente entre nós - nós, MFA - considerando que eram prematuras, que não deviam ser realizadas.
 EXP. - Era o seu caso ?
 O.S.C. - Eu considerava que devia ser dado mais tempo, de facto. Propus: «Não será melhor adiar o processo eleitoral?» E os meus camaradas disseram: «Não, assumimos este compromisso, temos de cumprir.» E eu aceitei isso perfeitamente.
 EXP. - Você não fez isso, também, porque as sondagens - as primeiras que começa a haver em Portugal - davam a vitória ao PS ou ao PSD ?
 O.S.C. - Não, era-me perfeitamente indiferente. Não me interessava rigorosamente quem fosse aue ia vencer as eleições. 0 importante era considerar que nós, MFA, com o poder ou não, tínhamos a possibilidade de consolidar o processo e de dar ao povo uma força muito grande, que tomasse irreversíveis as conquistas alcançadas. Nem as nacionalizações, nem a reforma agrária, nem as comissões de base, nada disso teve consolidação. E, para mim, esse foi um erro grave de todo o processo revolucionário. Avançou-se rapidamente para situações que nós julgávamos adquiridas, mas que, não tendo sido consolidadas, permitiram depois um recuo enorme.
 EXP. - Contou-nos como conhecem Mário Soares. E que contactos manteve com outros líderes partidários: Sá Carneiro, Álvaro Cunhal ?
 O.S.C. - Conheci muito mal o Sá Carneiro. Tive dois, três contactos com o Sá Carneiro e que não chegaram nunca ao ponto da discussão política. Penso que foi um homem com urna grande capacidade e visão política, e tinha para mim uma coisa extremamente importante numa figura política, que era capacidade de decisão. Tinha peso, tinha força e tinha carisma.
 EXP. - Mas estava do outro lado da sua barricada.
 O.S.C. - Sim, sem dúvida nenhuma.
 EXP. - Durante  o PREC, quem se vê na rua é Mário Soares a dar a cara e a lutar contra a forma como se está a desenvolver o processo revolucionário, enquanto Sá Carneiro anda um bocado desaparecido.
 O.S.C. - Pois, isso é verdade. 0 Sá Carneiro resguarda-se muito nesse campo. E Mário Soares assume, de facto, a liderança da luta contra um sistema que já estava a ser implantado pelo PCP no terreno, um partido que tinha ficado em terceiro lugar nas eleições. Com a vitória nas eleições, Mário Soares tem a garantia de que vai ter um enorme apoio. Tem a garantia de que a esmagadora maioria dos oficiais do MFA também apoia o Partido Socialista.
 EXP. - A luta de Mário Soares tem duas frentes: é contra o PCP mas também contra sectores do próprio MFA e contra o próprio Otelo, que era urna das figuras de referência do MFA. E o Copcon faz nessa altura prisões por sabotagem económica e passa mandados de busca em branco.
 O.S.C. - Posso garantir que nunca, durante todo o PREC até ao 25 de Novembro, nunca prendi ninguém por minha iniciativa. Todas as prisões feitas pelo Copcon foram iniciadas a partir do 28 de Setembro por decisão do general Costa Gomes. Nós não tínhamos informação concreta sobre quem estava por dentro da «maioria silenciosa» e decidimos prender figuras de proa do regime fascista. Com o Costa Gomes, que os conhece, começamos a estabelecer uma lista das figuras do regime que vamos deter para impedir que possam servir de apoio à manifestação da «maioria silenciosa».
 
 
 EXP. - Essa lista foi feita com o controlo de Costa Gomes?
 O.S.C. - Exactamente. Bom, também são avançadas outras figuras, o Melo Antunes tem mais algumas ideias, e faz-se ali uma lista. Mas o comandante Conceição e Silva, que estava a presidir a Comissão de Extinção da PIDE-DGS, chama a atenção para urna coisa: quando quis dar execução a mandados de captura contra elementos da PIDE e da Legião, entregou-os ao Casanova Ferreira que. corno major, estava a comandar a PSP de Lisboa e ele recusou-se a cumpri-los, com a afirmação de que esses mandados não vinham assinados por um juiz. Perante esta intervenção, o Costa Gomes diz: «Ah é?. Bem, não podemos estar a perder tempo, a manifestação está prevista para amanhã, temos de prender essa gente toda... Então, vão ser forças militares a fazer as prisões. Otelo, em meu nome, fica encarregado de assinar os mandados de captura para essa gente toda. Aproveita-se a situação para, além disso, recuperar os mandados de captura preparados pelo Conceição e Silva para elementos da PIDE e da 1ª Legião Portuguesa até ao nível de comandante de terço. Então o Conceição e Silva vai consigo para o Copcon e lá o Otelo assina os mandados de captura para prendermos o Elmano Alves, o Silva Cunha, essa gente toda.»
 EXP. - Isso abrangia quantas pessoas, mais ou menos ?
 O.S.C – Sei lá ... Dezenas de pessoas. Bom, foi uma dificuldade tramada, mas que levámos a bom termo. E o Costa Gomes disse: «A partir daqui, o Otelo é a única entidade autorizada a isto, podendo delegar, se quiser, em comandantes de região...»  E eu passei a fazer essa assinatura.
Nunca tomei a iniciativa de prender fosse quem fosse. Simplesmente, a  diluição  de poderes era grande e havia o Gabinete do Primeiro Ministro que solicitava ao Copcon a prisão de elementos vários, inclusiva por sabotagem económica... O Rosário Dias, que era um jovem economista ao serviço da Marinha e assistia o Vasco Gonçalves para as questões económicas, é responsável pelo pedido, feito através do Gabinete do primeiro-ministro, de dezenas de prisões por questões de sabotagem económica. 0 Rosa Coutinho, enquanto elemento da Junta de Salvação Nacional fartou-se de me pedir, de solicitar ao Copcon, a prisão de elementos... Tive, aliás, um problema desgraçado com o cardeal Patriarca, por terem sido presos por ordem dele elementos da administração da Rádio Renascença. Havia elementos da Junta de Salvação Nacional que também pediam e as Comissões de Inquérito ao 28 de Setembro e ao 10 de Março... No rescaldo do 11 de Março, quando ainda estava a decorrer a chamada «assembleia selvagem», recebo no Copcon a indicação de que deve ser preso fulano e fulano, o Almeida Bruno, etc. A minha iniciativa foi nula em relação às capturas.
 EXP. - Mas se teve tanta iniciativa em relação a outras coisas, porque é que aí não teve iniciativa nenhuma? Opor-se, dizer que achava mal... ?
 O.S.C. - Aí não tomei iniciativa nenhuma porque eu não estudava processos de sabotagem económica nem outros processos tossem eles quais fossem.
 EXP. - Então ficava indiferente perante a prisão de Almeida Bruno, por exemplo, com quem tinha andado a conspirar antes do 25 de Abril ?
 O.S.C. - No decorrer da «assembleia  selvagem»  do MFA I recebo um telefonema de um oficial do Copcon presente nessa assembleia que me diz «Meu general, há aqui uma coisa importante: é necessário mandar prender o Almeida Bruno, porque foi decidido aqui na reunião.» E eu: «Que caraças! 0 Almeida Bruno?! Mas porquê? Ele também está metido nisto, no 11 de Março?» «Está, julga-se que sim, vai formar--se urna comissão para estudo disso, mas para já é necessária a prisão preventiva do Almeida Bruno...» 0 que é que eu fiz? Telefonei para casa do Almeida Bruno, foi ele que veio ao telefone... «Eh pá, João, tenho aqui um problema grave para te colocar. Acabo de receber um telefonema duma assembleia que está a decorrer no Centro de Sociologia Militar, nas Necessidades, para te dar ordem de prisão. Portanto, pergunto-te uma coisa: tu, como oficial dos Comandos e de Cavalaria, pretendes ir para o Regimento de Comandos, na Amadora, ou pretendes ir para Cavalaria 7 ?» «Eh pá então prefiro ir para Os Comandos.» «Então pronto, faz-me um favor, fardas-te, vais para a Amadora, apresentas-te no Regimento de Comandos e dizes que estás debaixo de prisão e que ficas lá a aguardar que sejas solto.» Pronto, foi isto que eu fiz. Não me lembro de uma única iniciativa que tenha tomado no sentido de prender fosse quem fosse.
 EXP.-  Da sua parte houve, pelo menos, urna omissão total de iniciativa.
 0.S.C.-  Por vezes recusei. No Conselho da Revolução. Uma vez por causa duns artigos da Vera Lagoa publicados no «Diabo», em que se atacava violentamente o Costa Gomes, o Pinto Freire disse no  Conselho da Revolução, na presença do Costa Gomes e sem que este ripostasse, o seguinte: «Eh pá, ó Otelo, tens de mandar prender imediatamente a Vera Lagoa! Já vistes os insultos que ela fez contra o nosso general?» E o general dizia: «Pois de facto a Vera Lagoa...»  E eu disse: «0 quê"?! Prender a Vera lagoa? Então tens de me dar uma ordem por escrito e eu, sim senhor, assino o mandato de captura, mas eu prender a Vera Lagoa não mando prender...»
 EXP. - Nunca pensaram prender Balsemão, por causa do EXPRESSO?
 0.S.C. - Não.
 EXP. - Nunca sentiu que era um processo que você já não controlava na totalidade?
 O.S.C. - Se eu não assinasse os mandados de captura, passava a ser eu o sabotador do processo revolucionário. Custou-me muito mandar para a prisão malta minha amiga, o Monge, preso em consequência do 11 de Março, etc. Mas... Houve coisas que eu não consegui controlar de forma alguma, porque as pressões eram muito grandes. No caso do litígio que tive com o D. António Ribeiro, estava eu numa reunião do Conselho da Revolução e quando fui tá falar, num intervalo, o homem apareceu-me  extremamente zangado porque já ali estava há bastante tempo à espera. Diz-me: «Venho cá exigir a imediata  libertação de dois administradores da Rádio Renascença que foram mandados prender à sua ordem!»  Eu expliquei-lhe: «Olhe, de facto fui eu que assinei o mandado de captura, porque sou eu a personalidade que está autorizada a assiná-los, mas nem sei que são os administradores  nem porque estão presos. Portanto, só a entidade que solicitou ao Copcon a prisão é que pode pedir para serem soltos». «Então e quem é essa entidade»? «Olhe, é o almirante Rosa Coutinho!. Foi quem me solicitou a prisão das pessoas» «Então eu desejo falar imediatamente com o almirante Rosa Coutinho!» E eu: «Senhor cardeal, tenho um problema grave para lhe comunicar: é que o almirante Rosa Coutinho foi ontem em visita oficial à Alemanha Ocidental e só vem daqui a dias.» 0 homem ficou lixado : «Então e não há ninguém que resolva este assunto?!» E eu disse: «Não. Só o almirante Rosa Coutinho é que pode dizer para os libertar, porque ele é que tem o processo na mão, ele é que sabe porque é que os mandou prender.» 
 EXP. - Os poderes estavam completamente dispersos... Então nem o Presidente da República, Costa Gomes podia mandar libertar esses homens, não estando cá Rosa Coutinho?
 O.S.C. - Não, porque não queríamos beliscar as competências de uns e de outros. Se ao Rosa Coutinho tinha sido cometido o estudo do processo da Rádio Renascença, ele é que sabia quando é que os podia mandar soltar. De facto, havia uma diluição muito grande  de poderes e eu ali era o peão das nicas, porque era o homem que assinava os mandados de captura.
 EXP. - E os mandados de captura em branco?
 O.S.C. - Eu tinha uma diversidade de poderes, havia tanta coisa que eu tinha de fazer, dia e noite, que dispersava a minha actividade por vários centros. Quando conseguia ir para casa, para ver se descansava alguma coisa (eu dormia nessa altura, três, quatro horas por noite), podia acontecer, como aconteceu frequentemente, que houvesse necessidade de efectuar prisões. Dou um exemplo: sabotagem económica. Aconteceu com frequência que chegava do aeroporto pedido oficial ao Copcon para uma prisão de alguém que pretendia sair do País e que, feita a revista às malas pela Guarda Fiscal, se verificava que levava, sei lá, em notas, dez mil contos, e levava ouro, jóias, etc. nas bagagens. Não se sabia quem era a pessoa, porque não era dada a identificação pelo telefone. Se isto acontecesse às três da manhã, era um problema. 0 que é que eu passei a fazer?. Deixava dez mandados de captura assinados, em branco, no cofre do Copcon. Se eles não fossem utilizados durante o tempo de serviço, durante a madrugada toda, no dia seguinte o oficial de serviço entregava-os ao chefe da repartição de informações para recolherem ao cofre. Se fossem utilizados, o oficial de dia comunicava: «Olhe, estes não foram utilizados, mas estes foram. Foram feitas três prisões durante a madrugada. Estão aqui os nossos exemplares.» E, pronto, eram arquivados. Era assim. Tinha esta confiança nos meus oficiais, e depois tinha de delegar nos Comandantes de Região. 0 Charais, o Pezarat, etc., assinavam também mandados de captura em branco, por minha delegação. Não era eu que os assinava, eram eles - «Pelo Comandante do Copcon», e assinavam eles.
 EXP. - A impressão que fica é que, da parte dos partidos, havia urna ideia do País e para que lado queriam ir; da parle do MFA, porém, caminhava tudo um bocado sem rei nem roque...
 O.S.C. - Julgo que sim, julgo que tem razão ao afirmar isso. Não, vamos lá ver, não tanto assim também. 0 MFA tinha um programa político, que apresentou ao País em 26 de Abril. E todos nós estávamos com esse programa político. Agora, o período revolucionário abre perspectivas, entra-se na euforia de que tudo é possível, da utopia. E tudo parece possível, até que, com os resultados eleitorais para a Assembleia Constituinte, os partidos ganham urna força muito grande, e o Partido Socialista sabe, nesse momento, o que vale e para onde é que pode ir. Claro que os partidos têm o seu programa e querem levá-lo por diante...
 EXP. - E têm um pensamento político estruturado que não havia na cabeça da maior parte dos militares do MFA.
 O.S.C. - 0 MFA está, de facto, baralhado e vai dividir-se de acordo com as perspectivas partidárias. A esmagadora maioria do MFA adere á perspectiva de Mário Soares, do PS. Uns ao PSD, outros ao PS. Há alguns que aderem à organicidade, aos esquemas disciplinados do PCP. E há outros mais libertários, mais anarquistas, que não jogam, nem com o PS, nem com o PSD, nem com o CDS, nem com o PCP, como é o meu caso, e jogam em «libero».
 
 EXP. - Em Maio de 75, na sequência das privatizações, fez um discurso contra os partidos e defendeu a liderança do MFA como «movimento de libertação». Libertação de quê? O País já estava libertado ...
 0.S.C. - Considero que 0 MFA foi, de facto, um movimento de libertação. Libertação de um povo que...
 EXP. - Mas em Maio de 75 já havia liberdade. 0 que é que ainda era preciso libertar? Parecia que o MFA se queria libertar dos partidos.
 0.S.C. - Podemos entender isso, porque a partidocracia instalara-se, de facto, no País, e eu considero que o povo fica demasiadamente sujeito e subordinado aos ditames partidários. E é essa libertação que eu julgo que se tornaria necessária para que o povo pensasse por si próprio e tivesse a possibilidade de exprimir esse pensamento em assembleias populares.
 EXP. - Ainda em Maio de 75, enquanto o PCP tinha o «Diário de Noticias», «0 Século», a RTP, etc., parece que a área revolucionária que o Otelo representa sentiu também necessidade de ter os seus meios de comunicação. E há uma evidente cobertura do Copcon à ocupação tanto do «República» como da Rádio Renascença.
 0.S.C. - Há uma adesão dos  trabalhadores  desses meios ao Copcon, mas não é intenção do Copcon assumir como nossos esses órgãos.
 EXP. - Mas vêem com alguma simpatia a mudança de agulha nesses órgãos de informação.
 0.S.C. - Sim ... Posso ver com simpatia mas não tenho intenção de transformar o «República» e a Rádio Renascença em órgãos de informação ao serviço do Copcon. Longe de mim essa ideia.
 EXP. - Logo a seguir, em Junho, e aquela sua célebre frase, numa entrevista à Rádio Renascença, de que porventura estaria arrependido de não ter colocado os contra-revolucionários  no Campo Pequeno...
 O.S.C. - Não, a frase não foi essa. Perguntam-me se nós estamos preocupados ou não com o avanço que têm tido as forças contra-revolucionárias, que assaltam, destroem, incendeiam sedes de partidos de esquerda, do Partido Comunista, do MDP, de outros partidos de esquerda.. E eu digo: «Olhe, estamos, de facto, muito preocupados. Isto está a ter um crescendo muito grande, e oxalá que nós não tenhamos de meter no Campo Pequeno os contra-revolucionários antes que eles nos metam lá a nós. Com este crescimento da contra-revolução, qualquer dia já estamos nós encostados à parede, e eles liquidam-nos.»
 EXP. - Não chega a dizer que na Guiné, por exemplo, foram fuzilados os contra-revolucionários ?
 O.S.C. - Nunca falei em fuzilamentos. Nunca.
 EXP. - Entretanto, no Verão Quente forma-se urna tróica constituída por Otelo, Costa Gomes e Vasco Gonçalves. E ela que dirige o MFA?
 O.S.C. - Não chegou a funcionar. Isso foi uma proposta do Marques Júnior, para evitar reuniões constantes do Conselho da Revolução. Para decidir matérias que não oferecessem grande controvérsia, o Costa Gomes podia rapidamente chamar a Belém o primeiro-ministro e a mim. Mas houve só uma tomada de posição desse directório, em que eu perdi. Quando aparece o Documento dos Nove, o Vasco Gonçalves propôs a retirada imediata do comando das regiões militares ao Charais e ao Pezarat, que tinham assinado o documento, e eu sou absolutamente contra isso. E perdi porque o Costa Gomes, curiosamente, também alinhava nisso. O Costa Gomes também tinha ficado muito incomodado com, o Documento dos Nove. É curioso que, mais tarde, aparece o Costa Gomes apaparicado pelo Grupo dos Nove - até hoje...
 EXP. - 0 Copcon, ai, já vinha a ser acusado por elementos do MFA de ser um Estado dentro do Estado, ou seja, emitia comunicados paralelos aos do Conselho da Revolução, tinha iniciativas autónomas.
 0.S.C. - Sim, era de facto um centro de poder, reconheço isso. Mas havia uma dispersão tão grande de centros de poder... Era o gabinete do primeiro-ministro, era o Copcon, era o Conselho da Revolução, eram as regiões militares... Era difícil saber onde é que estava a verdadeira sede do poder. Eu procurei desesperadamente utilizar a fatia de poder que me era concedida, no sentido de favorecer o mais rapidamente possível o acesso dos trabalhadores ao poder.
 EXP. - Diz que nesse Verão Quente de 75 nunca pensou que houvesse o risco de uma guerra civil. Nunca temeu que as divisões entre o Copcon, os militares ligados à ala comunista e os militares ligados ao Documento dos Nove pudessem evoluir para um confronto entre militares?
 0.S.C. - Nunca admiti essa hipótese porque, para mim, os valores morais e os valores de camaradagem, de amizade e fraternidade superam todas as divergências.
 EXP. - Isso é para si. Mas acha que todos os militares se norteavam por esses valores?
 0.S.C. - Eu não admitia, também, que qualquer camarada meu tivesse na ideia encostar-me à parede e fuzilar-me, ou coisa no género. Recordo-me que, há tempos, estava a jantar em casa do Vítor Alves e a discutir exactamente tudo isto, quando ele disse: «Eh pá, tu tiveste a possibilidade, de facto, durante o PREC, de levar por diante a instauração da democracia directa, do chamado poder popular. Mas, para que isso acontecesse, precisavas de ter tornado uma posição extremamente forte: encostavas à parede o Vítor Alves, o Melo Antunes, o Vasco Lourenço, o Costa Neves, o Garcia dos Santos, o Eanes, etc., tipo dia de S. Valentim, e liquidavas a malta toda. E aí tinhas a possibilidade de a instaurar.  A mulher dele levou aquilo a sério. «Ó Vítor, estás a dizer que Otelo... Alguma vez imaginas isso possível?» E o Vítor disse: «Não, não acho possível, mas exactamente por isso é que o Otelo perdeu, porque quis levar por diante um projecto que não era exequível porque nós não alinhávamos. E como é evidente o Otelo nunca levantaria um dedo contra nós, nós ganhámos.»
 EXP.- No entanto, prendeu os seus amigos Manuel Monge e Almeida Bruno.
 O.S.C.- Prendi, não, mandaram-me prendê-los. Eu também fui mandado prender pelo Eanes, em consequência do 25 de Novembro.
 EXP.- Mas não tem uma grande amizade pelo general Eanes...
 O.S.C.- Tenho, sim.
 EXP.- Dá-se bem com Eanes ?
 O.S.C.- Muito bem. E o Eanes tem por mim uma estima e amizade muito grande. Nada daquilo que foi o percurso político de cada um de nós influiu na amizade e na consideração que temos uns pelos outros.
 EXP.- Não cortou relações com ninguém, nem ninguém cortou relações consigo ?
 O.S.C. - 0 único Camarada que cortou relações comigo   e que eu protegi até ao limite possível durante o PREC  foi o Dinis de Almeida. De resto, não tenho problemas com mais ninguém. Tive, da parte do próprio Spínola, uma demonstração para mim extraordinária: em 94, passou por cá o Yasser Arafat, e o Mário Soares ofereceu um jantar na Sala dos Espelhos do Palácio de Queluz em sua honra. A certa altura, vejo aparecer o marechal Spínola e pensei: «Bem, já vou ter aqui um problema grave.» Estávamos na conversa, o marechal aproximou-se do nosso grupo, a sala era pequena e só havia um cadeirão na sala, forrado a vermelho, onde ele se foi sentar. De repente, levanta-se do cadeirão direito a mim.. «Com licença. Mas... mas você é o Otelo!» E eu disse: «Pois sou, meu general. É o meu nome, de facto.»  «Mas que prazer tão grande que eu tenho em vê-lo! Há quanto tempo não o via! Mas que prazer tão grande!» Agarrou-me na mão e arrastou-me por ali fora à procura da mulher, a D. Helena. «Maria Helena! Olha quem é que está aqui!» Eu parecia o filho pródigo. Bom, não satisfeito com isso, não me largou a mão e quando vêm chamar para o jantar leva-me atrás. Ele era o primeiro na lista do protocolo que vai sendo anunciada: «Senhor marechal António de Spínola e esposa!» E, levado pela mão, entro eu como segunda figura protocolar. 0 responsável do protocolo fica aflito, a olhar para mim. .. «Major...?» E eu: «Tenente-coronel.» «Tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho!» E entro na Sala dos Espelhos.
 EXP. - São as originalidades do 25 de Abril e dos revolucionários à portuguesa: não dão tiros uns nos outros, continuam amigos apesar de se prenderem...
 O.S.C.- Sim... Prevaleceram sempre nas nossas relações elos muito fortes firmados pelo risco comum que corremos para derrubar o regime...
 EXP. - E também a guerra...
 O.S.C.- A guerra, a nossa guerra ...
 EXP. - É urna coisa que aproxima muito.
 O.S.C.- É. E, depois de tudo  que tínhamos passado, envolvermo-nos numa guerra Civil estava completamente fora de propósito, era uma coisa de uma irresponsabilidade tão grande que a mim nunca me passou pela cabeça.
 EXP. - Porque não assinou o Documento dos Nove?
 O.S.C. - Primeiro, porque não me foi pedida a assinatura.
 EXP. - Por ninguém?
 O.S.C. - Por ninguém. Eu fui colocado perante o Documento dos Nove quando estava a entrar para um «aviocar», no aeroporto militar, eu e o Fabião. O Vasco Lourenço foi lá ao aeroporto para o entregar a cada um de nós. «Gostava que vocês tomassem conhecimento deste documento que nós elaborámos.»
 EXP. - Esse documento foi uma surpresa total para si?
 O.S.C. - Total. E o meu espanto foi grande quando soube depois que aquilo foi logo publicado no «Jornal Novo» e que tinha circulado pelas unidades para recolher assinaturas. Até que eu fiquei um bocado agastado com isso.
 EXP. - Mas noutras circunstâncias assinaria esse documento?
 O.S.C. - Era capaz de não ter assinado, porque era um documento de crítica bem elaborada e correcta à situação que se vivia mas que não abria perspectivas nenhumas, não abria alternativas, não dizia: «Isto está mal e devemos fazer assim.» E foi por isso que eu promovi imediatamente a elaboração do chamado Documento do Copcon, como resposta a esse. 
 EXP. - Quem é que escreveu o Documento do Copcon?
 O.S.C. - Pedi ao major Tomé para criar um grupo de trabalho, juntamente com um oficial ou dois do Copcon – o Dias Ferreira, creio eu, e não sei se mais alguém.
 EXP. - Sentiu que, de alguma forma, o PCP nessa altura se encostou a si?
 O.S.C - 0 PCP encosta-se, de facto, ao Copcon, porque o Documento dos Nove vai atingir essencialmente Vasco Gonçalves e o PCP. 0 PCP aí sente-se um bocado desamparado e vai tentar estabelecer uma aliança táctica com o Copcon...
   EXP. – É nessa altura que tem um jantar com o Álvaro Cunhal?
 O.S.C. - Não, isso já tinha sido antes. Foi aqui na Quinta da Figueirinha, em casa do Silva Graça. Um dia ele pede-me para ir lá a casa jantar e quando cheguei estava lá o Álvaro Cunhal. Foi o próprio Silva Graça a servir o jantar, à porta fechada, só estava eu e o Álvaro Cunhal.
 EXP. - Foi aí que o conheceu?
O.S.C. - Já se tinha encontrado comigo no Copcon. Pediu-me uma audiência e eu falei com ele.
 EXP. - Qual era o objectivo do jantar?
 O.S.C.- Ele queria manifestar-me uma preocupação muito grande relativamente ao curso dos acontecimentos. Julga que há em marcha uma contra-revolução e quer induzir-me a tomar medidas. Defende que as grandes conquistas já alcançadas deveriam ser consolidadas e que é preciso travar a contra-revolução, senão a revolução estará perdida.
 EXP. - Foi o único encontro a sós que teve com Álvaro Cunhal?
 O.S.C. - 0 encontro-surpresa foi esse, de facto, em casa do Silva Graça. Para trocar impressões sobre a situação política, para ele fazer críticas ao MFA - o que me deu oportunidade também de tecer críticas ao PCP. Ao todo, foram aí uns três encontros.
 EXP. - E contactos com outros dirigentes do PCP? Tinha ou não?
 O.S.C. - Tinha. Com dois dirigentes do Comité Central - o Jaime Serra, que algumas vezes se deslocava ao Copcon, e o Raimundo Narciso, alem do Rogério de Carvalho, que frequentemente se reuniu comigo para me dar indicações sobre matéria contida na documentação da PIDE-DGS que ele ia vendo.
 EXP.- No 25 de Novembro há urna movimentação dos pára-quedistas que é do conhecimento de Otelo e do Copcon, com a ocupação de várias bases.
 O.S.C. - Não é do meu conhecimento antecipado. Desconheço completamente que os pára-quedistas vão ocupar bases na sua luta contra o Morais da Silva. Só venho a ter conhecimento de que essa ocupação das bases poderá vir a realizar-se cerca das 5 da manhã do dia 25. Quando termina, às quatro e meia da manhã, uma reunião extraordinária do Conselho da Revolução, eu passo pelo Copcon. Sabia que estava aquela malta toda em polvorosa à minha espera, e vou lá dizer-lhes qual tinha sido a sentença final. Quando acabo de explicar que, de facto, prescindi do lugar de comandante da Região Militar de Lisboa, que vai ser entregue ao Vasco Lourenço, o Costa Martins, da Forca Aérea, que estranhamente lá apareceu, é o primeiro a tomar a palavra para dizer alto e bom som que os pára-quedistas não aceitam essa situação e que vão ocupar as bases aéreas e o Comando da Região Aérea. Isto, a mim, causa-me urna estranheza muito grande, e pergunto-lhe: «Então, mas porquê? 0 que é que os pára-quedistas têm a ver com isto? Isto aqui é o Comando da Região Militar de Lisboa, e eu continuo como comandante do Copcon. Eles são da Força Aérea, portanto, não têm nada a ver com isto.» «Eh pá, mas isto que eu te estou a dizer é verdade, vai acontecer.» Deitei-me eram seis e meia da manhã ou coisa do género, e cerca das onze e meia da manhã acordado por um telefonema do meu chefe de Estado-Maior, o Artur Baptista que me pede a rápida comparência no Copcon porque algo de grave se está a passar. Eu pergunto: «Mas o que é que foi ?» «São problemas da Força Aérea, mas que podem ser extremamente preocupantes.» Tão rapidamente quanto possível arranquei, fui para o Copcon, e o Artur Baptista explicou-me: «Meu general, na madrugada de hoje, às cinco e meia da manhã, as bases aéreas foram todas ocupadas, o Estado-Maior da Força Aérea e o Comando da Região Aérea. Está preso o Pinto Freire, no Cornando da Região Aérea, e a situação é extremamente grave.» E eu disse: «Caraças, então aquilo que o Costa Martins dizia confirmou-se.» Fui para Belém, apresentei-me ao Costa Gomes, que me chamou de lado e disse: «Otelo, ainda bem que chega! Estava aqui preocupadíssimo com a sua ausência. Você já sabe o que se está passar? Mandei cá chamar o Costa Martins disse-lhe para ser portador da seguinte proposta junto dos  pára-quedistas: eles abandonam já as bases aéreas que estão a ocupar, regressam todos a Tancos, e amanhã eu e o Otelo vamos a Tancos e proponho-lhes que abandonem a Força Aérea, regressem ao Exército e constituam urna força organizada às ordens do Copcon. O que é que o Otelo acha disso?» E eu disse: «Acho óptimo.» Mas o Costa Martins nunca mais apareceu no Palácio de Belém, desapareceu das vistas a partir daí. Portanto, o Costa Gomes esperou... eram duas, duas e meia da tarde. 0 Costa Gomes resistiu às pressões do Vasco Lourenço para desencadear a operação que o Eanes tinha preparado e aguentou até às quatro horas, mas o Costa Martins não apareceu. Nessa altura, o Costa Gomes deu luz-verde para o arranque da acção. Os Comandos foram para a Calçada da Ajuda, como se sabe, dominaram a Polícia Militar, mas nenhuma das unidades sob o meu comando saiu, porque eu não dei ordens a ninguém para sair. Ficaram aquarteladas, à espera dos acontecimentos, a ver como aquilo evoluía. Quando os comandos começam a atacar a Polícia Militar, esta reage e dão-se os cinco mortos. Também há uma iniciativa do Dinis de Almeida, que sai com chaimites do RALIS, à revelia de qualquer ordem que Ihe tivesse sido dada. As indicações minhas eram para aguentar. Eu estava em Belém e recebo, por exemplo, uma chamada do capitão Rosado da Luz, que comandava o forte de Almada, em pânico, a dizer--me: «Meu general, estão aqui a cercar o forte de Almada! Sei lá, eles devem ser para aí uns dez mil operários do Alfeite, da Setenave, da Lisnave, estão aqui a exigir a entrega de armas. 0 que é que eu faço? Abro os portões? Dou armas, não dou armas? E eu disse: «Eh pá, não distribuis nem um canivete, nada! Porque se dás uma arma a alguém temos para aí um granel desgraçado neste País.» 
 Portanto, foi dada a indicação para que ninguém se mexesse. 0 Dinis de Almeida resolve, por sua iniciativa, lançar-se na aventura de ir tentar contrariar os comandos, mas isso ou foram iniciativas isoladas ou então havia um plano congeminado - que eu estou convencido de que havia.
EXP. - Dinis de Almeida e Costa Martins eram ligados ao PCP. Depois há os operários da cintura industrial a pedirem armas...
 0.S.C. - E havia uma influência muito grande do PCP na área dos sargentos pára-quedistas.
 EXP.- O que acha que o PCP queria?
 0.S.C. - Eu julgo que o PCP estava a procurar aproveitar a luta dos páras, provocar a destituição do Morais e Silva, tentar obter um reequilíbrio a nível do Conselho da Revolução, donde tinham saído oficiais profundamente ligados ao PCP: 0 Vasco Gonça1ves, o Corvacho. Contaram, possivelmente, com a minha adesão ao processo. Simplesmente, eu estava completamente desinformado daquilo e procurei evitar que houvesse confrontos. Foi por isso que me dirigi a Belém e não tomei qualquer atitude ofensiva. Procurei foi acalmar as bases e manter a malta sossegadinha.
 EXP. - Nunca pensou sair de Belém, ir para o Copcon?
 0.S.C. - Não me foi concedida essa possibilidade.
 EXP. - Portanto, estava preso.
 0.S.C.- Não estava preso, estava era retido, de facto, em Belém. Alguém me disse, um coronel qualquer: «Bem, tu agora não podes sair daqui. Estás aqui retido e vais aqui aguentar enquanto tudo isto se estiver a desenrolar.»
 EXP. - Acaba aí o processo revolucionário do 25 de Abril?
 0.S.C. - Sim, é evidente. O processo revolucionário fica travado, definitivamente, com o 25 de Novembro. Mas não se pode dizer que o 25 de Abril morreu no 25 de Novembro, porque a perspectiva que nós, MFA, tínhamos do 25 de Abril era exactamente o derrube e a substituição da ditadura pela instauração de uma democracia política representativa, parlamentarista, como aquela que existe hoje.
 EXP. - 0 que morreu no 25 de Novembro foi o 11 de Março?
 0.S.C. - O 11 de Março não tinha sustentação nenhuma em termos políticos. 0 que morreu no 25 de Novembro foi, de facto, o processo revolucionário. Mas os meus camaradas tinham razão: o 25 de Novembro pretendia a retomada da pureza do espírito do 25 do Abril, e essa foi retornada.
 EXP. - Portanto, 0 PREC foi um desvio.
 0.S.C. - 0 PREC alterou as perspectivas político-ideológicas que em nós existiam no 25 de Abril de 74. O PREC permitiu essa alteração e, portanto, dá abertura a outros horizontes, outras portas. Nós sabíamos que o caminho era a democracia representativa, mas a certa altura perguntámos: «E porque não experimentar isto? Vamos ver, assembleias populares. Porque não comissões de trabalhadores? Porque não ocupação de terras?» Com o 25 de Novembro voltou-se à estrada principal, acabou o desvio e voltou-se à estrada principal...
 EXP. - Era muito imediatista, agia sem ter uma visão de longo prazo.
 0.S.C. - Certo. É verdade que não tinha essa visão de longo prazo. Julgava possível ter-se criado, na altura, um novo Estado popular, com um regime de democracia directa.
 EXP. - Na parte final do processo revolucionado parece que abdica da iniciativa, fica à espera de que sejam os outros a decidir, de que sejam os Nove ou o PCP a tomar a iniciativa.
 0.S.C. - Não. Eu procurei comer até ao fim a fatia de poder que me tinha sido dada. Sabendo que tinha de acontecer um qualquer 25 de Novembro, procurei levar tão longe quanto possível o que podia fazer. Dado o meu isolamento no seio do MFA, não tinha qualquer capacidade de resistir, a não ser que me encaminhasse para a guerra civil.
 EXP. - E isso, para si, estava completamente excluído?
 0.S.C. - 0 Varela Gomes, por exemplo, que aparece no Copcon na tarde do dia 25 de Novembro, é de opinião que eu devia ter encaminhado o País para a guerra civil, porque rapidamente ganhávamos a situação. Mas nunca me passou pela cabeça essa hipótese. Enquanto o Eanes – ainda há dias disse isso ao Vasco Lourenço - mandou distribuir armamento a civis, eu recusei sempre a distribuição de armas fosse a quem fosse.
 EXP. - Mesmo a elementos do PRP, no Nordeste, em Bragança?
 0.S.C. - Nada, nada. Nunca distribui armamento nenhum a ninguém.
 EXP. - E aquelas armas do capitão Fernandes?
 0.S.C. - Foi o capitão Fernandes! Foi o capitão Fernandes que, independentemente de qualquer conhecimento meu, deu descaminho a essas armas.
 EXP. - Como surgiu aquela sua frase muito repetida, segundo a qual o Cavalo do poder lhe passou várias vezes à porta mas nunca o montou?
 0.S.C. - Foi numa entrevista a um jornalista brasileiro. E dei vários exemplos. Fui por duas vezes instado pelo general Spínola, urna primeira vez pelo Costa Gomes, para a promoção a general de quatro estrelas. Podia ser hoje um general de quatro estrelas na reserva, a gozar a reforma, e recusei sempre isso. Fui instado pelo Vasco Gonçalves para o substituir como primeiro-ministro no VI Governo Provisório - recusei. Fui instado pelos Nove para substituir o general Costa Gomes na Presidência da República - recusei. Fui instado pelo PS para ser cabeça-de-lista em eleições parlamentares - recusei. De facto, nunca tive apetência nenhuma pelo poder pessoal.
 EXP. - Tinha uma grande simpatia pela revolução cubana. Ainda tem?
 0.S.C. - Não tinha uma grande simpatia pela revolução cubana. Tinha uma admiração muito grande pelos guerrilheiros da Sierra Maestra e pela luta extraordinária que eles desenvolveram contra
o regime de Fulgêncio Baptista, transformando a colónia americana de Cuba num país independente e orgulhoso de si próprio. Agora, o regime Cubano - se é a isso que se querem referir - não tive por ele qualquer admiração, nem tenho. Tive uma enorme admiração por um homem que foi Che Guevara.
 EXP. - Se vivesse hoje em Cuba não sentiria a opressão da falta de liberdade e a necessidade de fazer lá um 25 de Abril?
 O.S.C.- Não sei quais são as circunstâncias que se vivem em Cuba e qual é o tipo de opressão. Julgo que, de facto, é um regime extremamente repressivo, do tipo soviético, e o regime soviético sempre foi para mim profundamente negativo.
 EXP. - Destes 25 anos do 25 de Abril que se comemoram, passou mais de cinco na prisão. Acha que foi um preço elevado pelos caminhos aventureiros em que se envolveu no PREC e depois do PREC?
 O.S.C. - Acho que foi demasiadamente elevado, porque é sempre injusta uma punição quando não se cometeu o crime que nos é imputado. Fui punido com 20 dias de prisão disciplinar agravada em 76, eu que era um oficial exemplar, só por pretensas declarações minhas que vinham estampadas nos jornais. Já tinha sido punido com 44 dias de prisão preventiva em consequência dos acontecimentos do 25 de Novembro, também injustamente, porque não participei em quaisquer acontecimentos do 25 de Novembro de 75. E, finalmente, sofri cinco anos de prisão preventiva (e continuo sempre a defender esta afirmação, porque até hoje o processo não transitou em julgado) quando não tive nada a ver com qualquer acção praticada pelas FP-25. Nenhuma, nada. Nem nenhum assalto a banco, nem nenhuma colocação de bomba, nem nenhum homicídio, não tive nada a ver com isso. Mas o Partido Comunista, no interior da Polícia, entendeu utilizar esse meio para destruir qualquer possibilidade de eu e a FUP participarmos em eleições parlamentares e na eleição presidencial. Não tenho dúvida nenhuma em dizer isto.
 EXP. - Disse, em tempos, a seguinte frase: «Ainda está longe o dia em que eu seja uma mera figura decorativa.» Acha que já chegou ou não esse dia?
 O.S.C. - Continuo a considerar que ainda não estou na prateleira das figuras decorativas. E, aliás, tenho provas permanentes disso em tudo o que diga respeito ao 25 de Abril.
 EXP. - Para terminar: a memória é o que resta da sua revolução?
 O.S.C. - Sim, a memória extremamente gratificante e a tentativa através das palestras e conferências que faço de transmitir a verdade e a mensagem do 25 Abril. Tenho saudades muito grandes do processo revolucionário. Naquilo que os meus 62 anos me permitiram viver, foi o único período em que o  português - a tal entidade a abstracta que é o povo - se sentiu, de facto, participante na vida política do País, em que havia um fogo, uma exaltação, em que a asneira era livre, mas em que tudo parecia possível. A tomada do poder estava ali à mão, o povo agarrado à liberdade, e sentia algo de muito forte, de muito participativo, que actualmente não se verifica, porque as democracias representativas eliminam esse sentimento de participação activa, a democracia política passou a ser apenas o voto. As pessoas sentem-se afastadas das responsabilidades  políticas, tem um poder crítico muito grande em relação ao que se vive no País, mas não participam.  Eu, pelo contrário, crítico muito pouco, e procuro sempre exaltar, sobretudo no estrangeiro, o que de bom foi feito em consequência do 25 de Abril - e também do 25 de Novembro, que carreou, trouxe para os carris da pureza do 25 de Abril o que existe hoje em Portugal e o prosseguimento da democracia representativa.
(In Revista "Expresso" – 17/04/1999)


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