quinta-feira, 9 de agosto de 2012

“Samora Machel pediu-me desculpas”

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Depois de cinco anos de prisão ordenada pelo antigo estadista
- Declara Matias Mboa, autor de “Memórias da Luta Clandestina”
Por Armando Nenane
Fotos de Naíta Ussene
Ele e muitos outros da sua geração não assu­mem a designação chibotso por um mero acaso. É assim que continuam a se chamar entre eles desde que partilharam as celas do antigo regime opressor. No seu caso particular, a designação chibotso não terminou com a sua libertação das masmorras da antiga Polícia Política Portuguesa (PIDE). Matias Mboa, identificado por Thomas Kumalo no contexto da clandes­tinidade, viria novamente a perder a liberdade quando o presidente Samora Machel o mandou prender. Depois de cinco anos de reclusão, segun­do as suas palavras, Machel pediu desculpas, alegando que não sabia por que razão o tinha mandado para trás das grades.
Nascido a 6 de Janeiro de 1942 na localidade de Bobole, Matias Mboa, treinado na Argélia, foi nomeado chefe do Comando Operacional da 4ª Região Militar da Luta de Libertação Nacional desencadeada pela Frelimo, sob a direcção do então presidente da frente, Eduardo Mondlane.
O livro de memórias, que acaba de lançar, ainda é bem fresco e a sua leitura suscita muita curiosidade. Nesta entrevista exclusiva, Mboa não responde a tudo, chegando a anunciar para breve uma segunda parte que responderá a mais perguntas do género das que se seguem.
Terminando a apresen­tação deste seu livro, Teo­doro Waty pediu que o senhor deixasse de ser Thomas Kumalo para ser Matias Mboa. Waty devia saber que é daqueles pedi­dos sem respos­ta imediata. Como é que o tratamos nesta entrevista?
Trata-me por Matias Mboa. Embora para mim os dois nomes tenham um significado muito especial, nesta situação prefiro que me tratem por Matias Mboa, nome pelo qual sou conhecido na esfera social. Matias Thomas Kumalo é um nome de guerra que me foi dado pelo primeiro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane. E o apelido Mboa faz parte do meu nome oficial, o nome que os meus pais me atribuíram. Durante a guerra é mais frequente escondermos o nome verdadeiro. Se calhar seja complicado falar de guerra, pois nem todos somos homens de guerra. E é isso. No “Palácio da Morte” temos que ocultar a nossa verdadeira identidade, pois era necessário que as pessoas me conhe­cessem por Thomas Kumalo, mas sem saberem quem é essa pessoa. Na difícil situação em que me encontrava, a dirigir a frente clandestina na luta de libertação nacional, tinha que usar este nome. Por exemplo, na cadeia tínhamos que usar nomes falsos para nos comuni­carmos entre as portas de ferro e madeira que separavam as celas. Escalávamos a porta de ferro, falávamos usando esses nomes. Parávamos de falar quando ouvíssemos os passos de um polícia, mas nunca era capaz de saber quem é o tal Kumalo caso ouvisse algo, embora conhecesse o Matias. Mas quanto à origem do nome, me deixa explicar que o cama­rada presidente Eduardo Mon­dlane chamou-me Thomas porque nos nossos debates o lema era acreditar vendo. Depois de ter estado na base de Kongua na Tanzânia, fui destacado pelo camarada presidente para representar Moçambique na Suazilândia. Para me identificar melhor, era mais fácil ser um Kumalo ou um Dhlamini. Foi assim que fiquei Thomas Kumalo.
Não terá sido muito fácil para si tomar a decisão de escrever este livro por se tratar de memórias referentes a momentos tenebrosos da sua vida e da vida do país. Mesmo assim acabou se decidindo. Como decidiu?
Comecei a escrever o livro quando ainda estava no “Palá­cio da Morte”. Como não fazíamos completamente nada na prisão, fui rabiscando. Na altura em que comecei a escrever, já recebia visitas da minha família, uma situação que já permitia trocar cartas escondidas nos cestos. É uma pena que hoje a nossa vida seja um pouco agitada, pois teria trazido para esta entre­vista exactamente o papel em que eu rabisquei um dos poemas que consta neste meu livro de memórias. Tenho ainda o poema no tal papel. Agora, quanto à publicação, devo confessar que não foi uma decisão fácil, sobretudo porque já muita gente vinha exigindo que eu publicasse, mas me custou entregar. Há muitos colegas da clandestinidade que também deviam publicar. São colegas que eu respeito muito até no seu estilo de contar a sua história, outros até que já morreram, mas as suas obras permanecem escondidas. Eu sofri essas pressões até que finalmente entreguei. Não quis entregar antes também porque achava que não era tempo. Tratando-se de uma história que toca pessoas vivas, achei que era cedo demais. Fui vendo os meus companheiros a desaparecerem, um por um, então me decidi. A outra razão é que na história da Frelimo sempre faltou uma parte, sobretudo, o capítulo da clan­des­tinidade. Por outro lado, a história mais conhecida é do Norte do país até Beira, mas cá para o Sul quase que não se conhece nada. Achámos que tínhamos que completar essa parte. Repara que até essas casas do Xipamanine, que aparecem no livro, eram as bases da clandestinidade, onde nós nos reuníamos. Quem passa por elas nem sequer se dá conta disso. Era para onde eu enviava os camaradas a partir da Suazi­lândia, como o caso dos camaradas Maheche, Leo­nardo Cumbe e Sitói. Não conseguimos fotografar a casa da família Sumbana no Xipa­manine, onde também era uma das nossas bases clandes­tinas.
O que significa recontar essa história hoje?
Confesso que recontar a história da derrocada da 4ª Região Militar da Luta de Libertação não é fácil. A luta de libertação estava dividida em três frentes, a armada, a diplomática e a clandestina. A 4ª Região Militar era a frente clandestina. Algumas pessoas me criticam dizendo que se trata de um livro muito triste. É triste sim. Porque se trata de factos tristes. É difícil para mim passar quinze dias sem me recordar dos amigos que morreram nas mãos da PIDE. É difícil não me recordar de todas aquelas torturas. É doloroso. A única coisa que me deixa alegre é saber que ao publicar este livro estou a tentar ressuscitar esses meus amigos. Penso que se recorda de uma parte do livro que conta que um grupo de presos políticos da luta clandestina foi pura e simplesmente atirado numa vala comum, sem julga­mento e sem culpa formada. É difícil, mas alegra-me um pouco a ideia de reviver esse passado. O chibotso, como a gente se trata, entende que o seu trabalho acabou com a libertação do país. O livro diz que um dos maiores trabalhos feitos pelos homens da clan­des­tinidade foi o da conscien­cialização política.
Que lugar tem o ex-preso político na sociedade mo­çam­­bicana? Referimo-nos do pós-independência até aos dias de hoje…
É o que eu disse antes. O chibotso sabe que o seu trabalho terminou com a liber­tação do país. Não era preten­são dos homens da clandes­tinidade e antigos presos políticos ganhar muito mais que a independência de Moçam­bique. Embora escrevamos para reavivar a memória como forma de homenagear os ex-presos políticos, é preciso que fique claro que poucos são os homens da clandestinidade que estão no governo. Porque o chibotso não se preocupa com o poder. O chibotso, tal como costumo dizer, é órfão de pai e mãe. A sua alegria está em trabalhar para o país, sem nunca pôr na cabeça a ideia de receber uma recom­pensa. Depois do 25 de Abril, eu e o camarada Josefate Machel fomos à Tanzânia, onde nos encontrámos com o presi­dente Samora Machel. Machel disse que eu devia abandonar o Banco Comercial de Angola, onde estava a trabalhar. Deu-me a ordem, mas não recebi qualquer quinhenta.
Ex-preso político do regi­me colonial, compara a figura do director da PIDE ao sanguinário Hitler. Apesar da diferença física, a monstruo­sidade é a mesma. Mais que ninguém, ter sentido na pele permitiu-lhe chegar a essa associação?
Fiz a comparação de Hitler ao então director da PIDE, António Vaz. Eram um homem muito parecido com Hitler, mesmo no aspecto fisionómico, na estatura e no bigode. No fundo, a intenção era fazer compreender que António Vaz e Hitler eram semelhantes quanto à maneira de agir e de torturar alguém. Eram pratica­mente a mesma coisa.
Há uma discussão hoje entre os teóricos da história sobre a importância da me­mó­ria. Este livro ajuda a esquecer o Chico Feio ou a reavivar ainda mais a memó­ria do monstro?
Não é possível acabar a história sem descrever Chico Feio. Não sei se foi por ter sofrido muito nas suas garras. Mas devo dizer que ainda que hoje me cruzasse com ele, caso fosse vivo, iria cum­primentá-lo, pois ele fez o que achou que era correcto fazer. Nunca gerei raiva contra quem me fez algum mal. Falar do Chico Feio não faz diferença. Há uma parte do livro em que digo que Chico foi morto pelo Povo. Nessa altura eu estava em Lusaka, como convidado a participar nas cerimónias do acordo. A morte de Chico Feio roubou-nos a oportunidade de saber as pessoas que matou, como matou e onde foram atiradas essas pessoas. Chico Feio sabia de tudo isso, daí que nunca um ex-preso político concordaria com a sua morte.
Thomas Kumalo nunca concordou com o socia­lismo, o regime escolhido para depois da Indepen­dência. Aliás, em conversa com Chichava nas vésperas da Independência, Kumalo lembrava-se do discurso do Staline no 3º Congresso, quando dizia que “Nós todos aqui constituímos um corpo. Temos a mesma visão, o mesmo pensamento”. Para seis meses depois, se ouvir dizer que 76 membros do então Comité Central tinham sido, pura e simples­mente, fuzilados. O que pensa hoje dos receios de Kumalo?
Em Angola, os fuzilamen­tos do MPLA foram muito mais de mil. Muito mais que esses 76 membros do Comité Central do partido de Staline. Mas não é sobre esse assunto que o meu livro fala, tanto é que não acompanhei os primeiros anos da independência por ter estado preso de 28 de Feve­reiro de 1977 a 31 de Dezembro de 1981. Falemos só do livro. Quanto ao modelo do comu­nismo, ainda mantenho a minha posição de que não é o melhor. Mas membros de um partido forte geralmente obedecem a uma certa disciplina partidária. E o que se decide é o que se faz. Inspirado nas minhas leituras sobre o comunismo, eu disse ao Chichava o meu entendimento. Não estou a dizer que o comunismo não seja bom, mas não é o regime ideal. E mantenho essa posi­ção.
É um pouco difícil falar do livro e não falar de si. O presidente Samora Machel mandou-lhe à prisão em 1977. Porquê?
Insisto que essa parte não tem a ver com este livro. Se calhar fosse oportuno espera­rem pela segunda parte do livro, a qual espero publicar nos próximos tempos. Mas deixa-me dizer que eu e o presidente Samora Machel éramos muito amigos. Não só foi com ele que fugi para a Tanzânia, mas porque também era uma pes­soa com quem passei as mesmas dificuldades na luta, dormíamos juntos em todos os países por onde passávamos, como se pode ler no livro. Vivíamos como dois irmãos, tanto mais que casei com a prima dele. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se ele achou que eu pisei a linha contínua, então mandou-me prender. Estive preso durante cinco anos sem saber porquê, pelo menos para a minha consciência. Depois de sair da prisão, o presidente Samora me pediu perdão, dizendo que não sabia por que me tinha mandado prender. Entrei muito jovem para a Frelimo e durante todo este tempo, julgo não ter cometido nenhum crime. A única conclusão a que chego, depois de Machel ter me pedido perdão e dito que não sabia por que tinha procedido da­quela forma, é de que não havia razão para me prender. Isso faz bem à minha consciência. A prisão era o meu destino. Era inevi­tável. Jesus Cristo salvou muitos enfermos, mas quando chegou a sua vez, não conse­guiu se desviar sequer um milímetro do seu destino.
O que Moçambique é hoje parece não ser o que sempre sonhou. Basta lermos pas­sagens do livro em que refere que os presos políticos sabiam que a sua honra podia um dia servir de muleta para certos homens sem escrúpulos ganharem o poder…
Na verdade, cometemos muitos erros ao longo desta nossa governação. Mas feliz­mente transformámos esses erros em lição. Ainda não atingimos a independência económica, social, mas esta­mos a lutar para conquistá-la. E estou certo, havemos de conquistá-la. De maneiras que confesso que estou satisfeito.
A história estudada nas escolas nem sempre bate certo com o que aconteceu de facto. Que importância tem o interesse de se recons­tituir a memória colectiva que hoje atrai muitos estudio­sos?
Uma das coisas que nos levou a dizer que temos que publicar foi por vermos que a história vai sendo deturpada. Há muitos que sabem o que realmente aconteceu. E não se deve esconder aquilo que se sabe, pois esconder também é traição. Nas datas come­morativas as crianças não sabem dizer quem foi o primeiro presidente da Frelimo, confun­dem tudo. Hoje, está a se falar bastante de Mondlane. É bastante importante, pois desperta o interesse das pessoas em saber. Confesso que antes de fixar o preço do livro, a maioria das pessoas que consultei disseram que devia custar não menos de 700 meticais. É um livro prefaciado pelo Presidente da República, Armando Guebuza, tendo a capa sido feita pelo cama­rada Malangatana. Sem som­bra de orgulho, reconheço a qualidade do meu trabalho literário. Mas se o valor fosse fixado a esse nível, quanta gente que só ganha o salário mínimo iria adquiri-lo? Foi por isso que decidi baixar, pois a minha pretensão é que o livro seja lido. É preciso ensinar a história aos mais novos, para que os erros do passado possam amanhã servir de lição.
Diz-se que para os polí­ticos a história é um instru­mento de poder, havendo espaço de manipulação para se alcançar ou manter o próprio poder. Fale-nos um pouco do que é isto…
Joseph Staline mandou escrever a história da União Soviética pintada de cor de rosa. Mas logo que ele morreu, deitaram gasolina nos livros e nos arquivos. Mas devo con­fessar que a única coisa que me alivia é saber que não estou a escrever história, mas sim a escrever memórias de quem viveu o momento. Portanto, estou a deixar dados que possam despertar o interesse dos historiadores, a quem cabe o papel de escrever a história. Os nossos historiadores não sabem onde ir buscar esses dados. Mas também o que acontece é que os estrangeiros são os que têm sabido tirar proveito desses dados. Tenho sido contactado mais por jornalistas e historiadores do resto do mundo do que pelos moçambicanos. Ficaria satis­feito se acontecesse ao contrá­rio. Muitos antigos comba­tentes estão a morrer. E com eles a história do país.
Um sociólogo português entrevistado por nós recen­temente referia que as repre­sentações sociais que os ex-colonizados têm dos ex-coloni­zadores, avaliados nos dis­cursos nas datas come­mo­rativas, mostram ainda dificul­dades de aproximação entre os Povos...
Eu penso que quem assim pensa está um pouco equivocado. Mesmo porque o moçambicano nunca con­fundiu o seu inimigo, nunca fez confusão entre o regime colonial e o cidadão portu­guês como homem. Aliás, mesmo os portugueses, grande parte deles olhem para o povo moçambicano como irmão. Basta ver aquele grupo de advogados – Almei­da Santos, Pereira Leite, Santa Rita, Vieira Lopes, Antero Sobral e outros – que sem esperar sequer um centavo dos ex-presos polí­ticos da PIDE, sabendo aliás que estavam a colocar-se na lista negra, apareceram a defender-nos com todo o seu conhe­cimento. O que pode haver são alguns portu­gueses com men­talidade neocolonialista que não conseguem adaptar-se à nossa política. Mas todo aquele que vem por bem, por bem é recebido e tratado.
SAVANA – 18.12.2009

1 comentário:

Anónimo disse...

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Thanks

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