quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Uma democracia sortuda

Ouvir com webReader Alunoveu1QUEM matou o gato e depois temperou-o com alho? Esta é a pergunta típica dos subúrbios de Maputo. Refere-se à convivência entre vizinhos. A vida em sociedade exige regras, uma das quais é o respeito pelo outro e sua propriedade, mas essas regras só funcionam quando elas têm como base uma moral comum.
Maputo, Quarta-Feira, 22 de Agosto de 2012:: Notícias
Pelo menos é isto que muitos de nós pensamos. Mas será verdade? Os gatos que terminam na frigideira da vizinha marcam o conflito pelo menos, de gostos. Para uns, gato é iguaria; para outros é animal de estimação; para outros ainda tem valor instrumental como força de intervenção rápida na luta contra os ratos.
O problema, contudo, é que gostamos do que valorizamos e valorizamos o que gostamos. Só que os nossos gostos, logo, os nossos valores, não são necessariamente idênticos. E podem entrar em conflito. Quando isso acontece, as coisas ficam interessantes do ponto de vista da democracia.
Se alguém me perguntasse qual é o debate político mais importante em Moçambique neste momento, eu não hesitaria em responder. Não é nem a questão dos recursos minerais, nem “raptos”, nem INSS nem mesmo o próximo congresso da Frelimo. Para mim, a questão mais importante foi levantada recentemente pelo Ministério da Educação com a confusão sobre o porte de lenços durante o Ramadão.
As atenções de muitos, como era de esperar no nosso país, concentraram-se mais no aparente desentendimento entre o Ministro e seu Vice-Ministro e viram nisso aquilo que consideram ser a inépcia inata do Governo. Mas esse incidente levantou – e continua a levantar – uma outra questão que é até fundamental para a consolidação da democracia no nosso país. Trata-se da questão da tolerância, possivelmente o valor mais supremo da democracia liberal.
No nosso país, muitos gostam de pensar que direitos humanos e a sua protecção sejam a coisa mais importante. Não são, pelo menos não de forma directa. A importância que esse assunto assume no nosso país explica-se, receio, pela influência desmesurada que a indústria do desenvolvimento exerce sobre o nosso imaginário político. Mas para pensar e consolidar a democracia, os direitos humanos são completamente secundários. A tolerância não.
Em reacção à decisão do Ministério da Educação houve associações muçulmanas que não só exigiram que o Governo esclarecesse por que o porte de lenços constitui uma violação da laicidade do Estado como também, o que já é muito grave, acusaram o Governo de ser anti-islâmico. A acusação é algo patética, mas já começa a dar ideia do que está em jogo neste assunto. O porte de lenço é importante para os muçulmanos. Quando são proibidos de fazer isso eles podem com toda a razão, e legitimidade, se sentirem atacados na sua religiosidade e, logo, na sua dignidade. E um sistema político que não pode proteger a dignidade dos seus membros está mal. É justamente por causa desta acusação grave que o assunto assume muita importância. Em que medida é que podemos dizer que o Estado moçambicano discrimina os muçulmanos e, por via disso, lhes falta ao respeito que um Estado democrático deve aos seus cidadãos, independentemente da sua religião, cor, raça, etc.? É aqui onde o gato do vizinho começa a miar.
Democracia e tolerância
Maputo, Quarta-Feira, 22 de Agosto de 2012:: Notícias

A história da democracia está intimamente ligada à questão da tolerância. Existe uma outra história fantástica que liga a democracia aos gregos e às tradições judio-cristãs, mas isso é mesmo isso: fantasia.
A democracia moderna, portanto a democracia, começa a ser pensada seriamente na Inglaterra com John Locke que escreveu a partir do exílio, na Holanda, a famosa “Carta que diz respeito à tolerância” nos finais do século XVII.
Nessa carta, o filósofo tomava posição em relação à intolerância religiosa que consistia em tentar impor a fé às pessoas. Na Inglaterra daquele período era extremamente perigoso ser praticante duma religião que não fosse a que era praticada pela monarquia.
Locke defendeu, portanto, que o bem-estar espiritual das pessoas não era assunto do Governo e que para o bem da harmonia social, a jurisdição do Estado tinha de terminar aí mesmo. A ideia duma esfera privada distinta duma esfera pública nasce também aí.
Em certo sentido, a democracia construiu-se na base também da limitação do poder eclesiástico, razão pela qual o Estado do Vaticano, por exemplo, que é reconhecido internacionalmente, nunca será vítima duma cruzada ocidental para a introdução da democracia... e há autoridades eclesiásticas que ainda se acham no direito de falar de alternância democrática em Moçambique.
Dois séculos mais tarde, e várias guerras civis depois em toda a Europa, guerras essas provocadas em parte pelo fanatismo religioso, outro grande filósofo britânico, John Stuart Mill, escreveu talvez a obra fundadora da democracia liberal: Da Liberdade. Nessa obra Mill, que já se tinha notabilizado por ter sido um dos defensores mais acérrimos do sufrágio feminino, reflectia sobre aquilo que ele chamou de “tirania da maioria” que poderia resultar da democracia representativa que já se praticava na Inglaterra. Essa tirania podia ser exercida de duas maneiras: através da lei e da reprovação social, criando uma situação em que a maioria, simplesmente por ser maioria, impõe a sua vontade às minorias.
Mill defendeu, portanto, que o sistema político democrático tinha de ser articulado com o princípio da liberdade que consistia na ideia de que o Estado só poderia interferir na esfera privada dos indivíduos apenas para impedir que estes causassem mal a outras pessoas. Fora disso, não tinha nenhuma jurisdição. Aqui também a grande preocupação era de defender a tolerância como princípio regulador das relações num contexto plural.
Aquilo que reconhecemos hoje como “direitos humanos” é essencialmente derivado desta noção de liberdade – portanto, de religião, expressão, etc. – cujo respeito e preservação exigem a virtude da tolerância por parte de todos. As questões que resultam disto não são, contudo, lineares. Quando é que somos tolerantes, por exemplo? Se eu não gosto de ver moçambicanos a festejarem o campeonato português como dementes, por exemplo, e não faço nada para os impedir de celebrarem aquilo que eu considero ser falta de auto-estima posso me considerar tolerante?
A questão é muito complicada e já mereceu tratado atrás de tratado filosófico ao longo de várias décadas pelo que nem vou tentar entrar nos detalhes da coisa. Vou apenas dizer que o consenso neste momento é que há tolerância quando nos encontramos perante práticas que ofendem o nosso sentido ético, portanto, são importantes para nós, e, acima de tudo, temos o poder de impedir essas coisas e mesmo assim aceitamo-las como o preço que devemos pagar para uma convivência sã. Isso, salvo um e outro detalhe, é que é tolerância.
O que acabei de expor aqui ainda é muito vago para nos proporcionar uma ideia exacta da importância da questão do porte do lenço. Em princípio, o que sustenta o sentimento de discriminação que os muçulmanos têm é a ideia de que aqueles que detêm o poder são de orientação não-muçulmana e atacam, com o seu sentido falso de laicidade, um símbolo importante dessa religião, nomeadamente o lenço.
Portanto, o Estado faz aquilo que Locke e Mill disseram para não fazer, nomeadamente interferir no espaço privado dos seus cidadãos. Em minha opinião, não é nada disto que acontece, mas penso que este é o sentimento que aqueles que se insurgem contra essa directiva do Ministério da Educação sentem.
Pessoalmente, penso que o Estado moçambicano não tem uma noção coerente de laicidade e nem é consequente e consistente na sua prática. Se fosse, proibia as suas ministras de usarem lenço no exercício das suas funções, não participava em nenhuma cerimónia religiosa e marcava o fim-de-semana para o meio da semana de modo a ferir as sensibilidades de muçulmanos, cristãos e judeus da mesma maneira.
Agora, se o Estado precisa de ser coerente e consistente até este ponto é uma questão que necessita de discussão, sobretudo, uma discussão feita por aqueles que conhecem as leis. Infelizmente, a este nível há ainda muito por fazer, pois não existe o hábito de discussão pública de questões constitucionais por parte daqueles que estão especializados na matéria. Mas essa discussão pública é importante para a saúde da nossa democracia.

Democracia à moçambicana
Maputo, Quarta-Feira, 22 de Agosto de 2012:: Notícias

A proibição do lenço explica-se, quanto a mim, de uma de três maneiras. Deve ser, primeiro, uma relíquia da arrogância cultural do poder colonial que via no porte do lenço o símbolo duma cultura africana atrasada. Em Julho deste ano fiquei estupefacto quando uma sobrinha muçulmana tirou o lenço antes de ir à escola – Francisco Manyanga – dizendo que era proibido.
Trazer lenço no nosso país não é apenas coisa de muçulmano. É típico da nossa cultura! A segunda maneira que explica a proibição é o autoritarismo da Frelimo gloriosa, sobretudo de Samora Machel, que num comício popular nos anos oitenta – se a memória não me falha – proibiu o uso do lenço, alegando que muitas mulheres se aproveitavam disso para esconderem piolhos. Qualquer coisa assim.
Era também uma forma de arrogância, a arrogância do poder absoluto. A última maneira é a do laicismo que mistura várias coisas: o republicanismo português, o marxismo da Frelimo gloriosa e a imitação (laicidade como característica do Estado moderno, sobretudo a imitação da França que tem uma história bem particular e que justifica uma posição laica tão forte como ela se apresenta naquele país; o terror jacobino assentou profundamente num poder eclesiástico bem particular).
É aqui onde se levanta, de novo, a questão colocada pela proibição do lenço. E neste sentido, a interpelação feita pelo grupo islâmico tem toda a sua razão de ser. Por que é que a laicidade do Estado exige a proibição do lenço nas escolas (estranhamente, esta proibição estende-se às escolas privadas também)? Mais uma vez, esta é uma questão que requer respostas que só podem ser encontradas no debate público. Só que esse debate tem todo o potencial para reforçar a nossa democracia porque ela vai nos afastar da repetição imbecil de slógans do discurso dos direitos humanos e vai nos trazer para mais próximo dum consenso deliberativo propriamente nosso.
Gostaria de dar o chuto inicial nessa discussão. Para o efeito, prefiro afastar-me da questão do lenço em si e concentrar a atenção nas questões gerais que ele levanta e que precisam de resposta.
Essas questões resumem-se a uma única: porque é que nenhum Governo tem o direito de impor a sua moral aos governados? Acho que a questão fica melhor assim do que tentar explicar a laicidade do Estado. A laicidade cabe na questão da moral do Governo. E para ser mais concreto na reflexão vou discutir a questão tentando mostrar por que a Igreja Católica, a Religião Muçulmana, os homossexuais e os que defendem o aborto estão do mesmo lado da trincheira. Não é fácil mostrar isso, mas vale à pena tentar.
Recentemente, duas autoridades eclesiásticas pronunciaram-se sobre assuntos que podem ser interpretados no quadro da questão da tolerância. O primeiro foi o Sheikh Aminuddin Mohamad, no jornal Zambeze do dia 26 de Julho deste ano, num artigo de opinião com o título “a religião e o ateísmo”. O segundo foi Dom Francisco Chimoio, Arcebispo de Maputo, numa entrevista concedida semana passada ao jornal “O País”.
O primeiro tem sido notável pela forma persistente como tem exposto os preceitos da sua religião em público – através da imprensa – em clara demonstração, quanto a mim, da importância que ele atribui ao papel da religião na moralização da nossa sociedade. O segundo, ao que tudo indica, prefere a conversa com os seus próprios crentes na igreja e noutros ambientes fechados. Cada um deles pronunciou-se sobre assuntos que testam o nosso compromisso com a tolerância.
Sheikh Aminuddin Mohamad levanta questões em torno da homossexualidade, ainda que o seu artigo não seja directamente sobre isso. O artigo é, como o próprio título sugere, sobre as diferenças entre a religião e o ateísmo. Segundo ele, a religião como crença em Deus é a melhor forma de aceder ao conhecimento do mundo, pois este é obra de Deus, ser infinito que não pode ser adequadamente entendido por nós mortais de mente finita. É melhor porque baseia-se na fé, enquanto que o ateu se baseia na ciência.
Dessa constatação, ele parte para a conclusão segundo a qual quem é ateu – portanto, não aceita a existência de Deus – não é diferente de capim ou animal, cuja razão de ser é apenas comer, beber e satisfazer as suas necessidades carnais. O golpe final é contra os homossexuais: são piores do que os animais porque só estão interessados em satisfazer as suas necessidades carnais.
Do ponto de vista lógico, é um argumento muito fraco e que constitui um atentado à razão. É fraco porque é essencialmente circular: o Alcorão é fonte fiável sobre a existência de Deus porque foi revelado aos profetas e está lá escrito que ele é a palavra de Deus. E, o que é pior, o Sheikh está dotado de capacidades intelectuais especiais para reconhecer isso melhor do que qualquer um de nós. É um raciocínio algo infantil apenas suplantado pela redução do homossexual às suas necessidades carnais. Dentro dessa lógica, mesmo o heterossexual poderia ser reduzido a essas necessidades.
Mas não é isto que interessa. O que interessa é que o raciocínio documenta a posição dos muçulmanos em relação à homossexualidade. Na verdade, podemos inferir, a prática da homossexualidade constitui uma ofensa ao sentido ético do muçulmano porque revela que há pessoas aí que não sabem da existência de Deus e andam perdidas.
Um verdadeiro muçulmano não pode ficar indiferente à sorte daqueles que foram criados por Deus. E não só. Aquilo que essas pessoas perdidas fazem polui o ambiente ético dentro do qual vivem os filhos (auto) eleitos de Deus. Se o muçulmano mandasse nesta terra proibia essa prática. E se esse muçulmano fosse o Sheik Aminuddin Muhamad proibia o ateísmo... Suponho que esta seja uma posição que é defendida também por outras pessoas com outras sensibilidades – por exemplo, cristãs. A estrutura é a mesma: há práticas aí fora que ferem o nosso sentido moral e que, por isso, deviam ser proibidas.
Na entrevista concedida ao Jornal “O País” Dom Francisco Chimoio posiciona-se em relação ao aborto com recurso a dois argumentos, cuja qualidade argumentativa é tão fraca e ridícula quanto a do seu colega muçulmano. Indagado se concorda com o aborto ele diz assim: “Aborto não. Se os nossos pais tivessem feito aborto, nós estaríamos aqui a falar (?). Não ao aborto. Nenhum ser humano tem o direito de matar outro ser humano”. Mais adiante, ainda na mesma entrevista, ele diz sobre a ideia de introduzir uma lei que regula o aborto: “... (é) uma lei importada porque não faz parte da nossa mentalidade, da nossa cultura africana”.
A conclusão que ele tira de que o aborto não pode ser permitido porque conferiria a certas pessoas o direito de matar outros seres humanos é o ponto central da questão. É claro que a legalização do aborto não seria isso, mas vamos reter essa ideia para efeitos de reflexão. As premissas que ele apresenta, infelizmente, não têm nada a ver com esse argumento. Se os nossos pais tivessem feito o aborto estariam os filhos de outros pais que não fizeram o aborto a falar sobre estas coisas.
Tão simples quanto isso, a não ser que ele queira enveredar pela falácia da encosta escorregadia que argumenta contra alguma coisa na base do receio de que essa coisa desencadeie um processo sem fim (espanta-me que um sacerdote católico, portanto, sujeito ao celibato, levante isto como argumento!). É o mesmo tipo de argumento que algumas pessoas usam contra as práticas homossexuais: já não haverá reprodução, aliás um receio que o próprio Arcebispo exprime na entrevista em relação à demografia nacional.
Também a outra premissa não se sai lá muito bem, nomeadamente a de que uma lei sobre o aborto é coisa importada (a religião cristã não é, obviamente...), não faz parte da nossa mentalidade (que ele conhece aparentemente muito bem) nem da nossa cultura africana (por exemplo, o celibato e a exclusão das mulheres do sacerdócio...). Mas mais uma vez, o que interessa aqui é o facto de estas declarações documentarem a oposição cristã ao aborto e mostrarem por que essa prática constitui uma ofensa ao sentido ético dos seus crentes.
Aqui entra o valor da tolerância para a convivência democrática. Proibir ou não proibir? Proibindo, proibir em nome de quê? De sensibilidades particulares? Não falei aqui das sensibilidades dos homossexuais e dos que defendem o aborto. De certeza que há entre eles aqueles que também se opõem a formas supersticiosas de estar no mundo.
Deve haver, entre eles, aqueles que não concordam com a opressão da mulher, com a ausência de democracia nas estruturas eclesiásticas – sobretudo na Igreja Católica – e com a indoctrinação de crianças que são sujeitas a rituais obscurantistas como o baptismo, a frequência da Madrassa, etc. que podem ser interpretadas como formas de lavagem de cérebros. Quem pensa assim também tem, em princípio, o direito de exigir a proibição dessas crenças e práticas.
Que argumentos, então, é que o Estado pode utilizar para apoiar uns e reprimir outros? Será que o Estado é detentor duma moral superior que lhe permita resolver estes conflitos éticos? De que maneira é que o Estado pode exercer o seu poder sem tomar partido ético a favor duma concepção particular do bem-estar?
Estas são as questões que a proibição do lenço levanta. Não há resposta fácil para esta questão, mas da resposta a ela depende a maturidade da nossa democracia. Essa maturidade não depende do que o Governo diz, mas sim da resposta que os muçulmanos, cristãos, homossexuais e defensores do aborto dão à questão sobre por que se devem tolerar uns aos outros. O cerne de toda a questão reside aí.
  • E. Macamo - Sociólogo

Uma democracia sortuda (Conclusão)
DA PROTECÇÃO DO ESPAÇO PRIVADO: porque é que, apesar de achar que homossexuais são piores que animais, o Sheik Aminuddin deve tolerar essa maneira de estar no mundo? Porque é que, apesar de achar que o aborto é licença para matar outros seres humanos, o Arcebispo Chimoio deve tolerar essa prática?
Maputo, Quinta-Feira, 23 de Agosto de 2012:: Notícias

Vai ser necessariamente pelas mesmas razões que devem obrigar o homossexual a aceitar a relação polígama dos muçulmanos e que devem obrigar o defensor do aborto a aceitar a subalternização da mulher na Igreja Católica.
A Filosofia Política tem dedicado muita atenção a estas questões, para as quais tem várias respostas. Vou pegar numa das respostas que é dada por filósofos apenas para ilustrar uma maneira de justificar a tolerância. É da autoria do filófoso Isaiah Berlin, que fez uma distinção entre liberdade negativa e liberdade positiva.
Liberdade negativa descreve as condições em que nos encontramos quando não existem constrangimentos, impedimentos ou restrições à nossa acção. Liberdade positiva, pelo contrário, descreve as condições em que nos encontramos quando dispomos (ou somos dotados) de meios para realizarmos os nossos fins.
Uma pessoa na cadeia ou uma pessoa que não consegue emprego por não ser do partido tem a sua liberdade negativa violada; uma pessoa que não dispõe de meios ou habilidades necessárias à prossecução dos seus objectivos, em contrapartida, está privada da sua liberdade positiva.
Para Berlin, o tipo mais importante de liberdade numa sociedade plural é a liberdade negativa (os sistemas totalitários como o marxismo, a religião, o neo-liberalismo e as boas intenções da indústria do desenvolvimento são pela liberdade positiva porque “sabem” o que é a boa vida).
Do pluralismo característico da nossa sociedade, podemos derivar um compromisso normativo que impõe a necessidade de sermos tolerantes. Esse compromisso diz que as pessoas e grupos de pessoas devem gozar da liberdade de poderem escolher ao nível político e pessoal qualquer tipo de bens (práticas sociais, objectivos na vida, etc.), desde que essa escolha não viole o direito que outras pessoas e outros grupos têm de exercer também a sua liberdade negativa. Este compromisso normativo está muito próximo da concepção defendida pelo filósofo americano John Rawls na sua teoria da justiça, e que assenta na ideia da prevenção do mal cometido contra os outros.
O Sheikh Aminuddin e o Arcebispo Chimoio devem tolerar a homossexualidade e a legalização do aborto porque a sua proibição constituiria uma violação da liberdade negativa dos outros, através da imposição de valores que não são deles. Que não existem “valores moçambicanos” é mais do que claro, pois caso contrário não se justificaria a existência das instituições que esses dois prelados representam. Seria também por essa mesma razão que os homossexuais e os defensores do aborto teriam de aceitar a poligamia e a subalternização da mulher para não imporem os seus padrões morais noutros. Esta é a essência da tolerância.
É claro que a discussão que faço aqui é bastante resumida e não faz justiça à complexidade do tema. Por exemplo, posso ter deixado a impressão de que ser tolerante é aceitar tudo. Esta é por acaso a crítica que os moralistas gostam de fazer aos que não são como eles. Eles dizem que só pessoa sem valores é que é capaz de aceitar tudo.
Mas a essência da tolerância é outra: a tolerância só pode ser praticada por quem tem valores! Eu não sou tolerante em relação à homossexualidade e ao aborto porque essas práticas não me incomodam. Sou indiferente. Uma pessoa com valores e que não é capaz de aceitar a ideia da tolerância é um fanático. E de fanáticos nenhuma democracia precisa.
Exercemos a tolerância quando aceitamos o direito que pessoas sem o nosso quadro moral têm de viver esse quadro moral. Agora, o que pode ser aceite vai ser sempre o resultado do debate na sociedade.
A legalização do aborto, por exemplo, de certeza que não vai dar luz verde a uma prática indiscriminada. Vai tomar em consideração todo o tipo de sensibilidades (culturais, sociais e médicas). Da mesma forma, a legalização da homossexualidade vai indicar em que condições (por exemplo, idade), onde e de que maneira é que as pessoas se podem entregar a essa prática. A lavagem cerebral das crianças no contexto religioso vai também ter os seus limites, por exemplo, no detalhe constitucional que protege o indivíduo. Toda essa discussão, porém, terá de ser feita no espírito de protecção da liberdade negativa, espírito esse que exige intervenientes no debate público que reconheçam que a sua oposição às práticas dos outros não justifica a imposição dos seus próprios fins a essas pessoas porque isso constituiria uma violação da sua liberdade negativa. Este foi, por acaso, o principal calcanhar de aquiles do projecto revolucionário da Frelimo gloriosa. Ele fundou-se na violação constante e sistemática da liberdade negativa dos cidadãos em nome duma concepção superior de boa vida.
É também o calcanhar de aquiles da indústria do desenvolvimento, alguns sectores da qual pensam que desenvolvimento é transferir para Moçambique a sua concepção superior da boa vida. É isto que está errado na projecção que o assunto da homossexualidade ganhou pois ele foi, em parte, promovido por sectores dessa indústria, na base da simples convicção de que um país democrático tem de legalizar essa prática.
Aqui já é fácil percebermos por que democracia não é coisa fácil. Ela não se faz na base de instituições eternas que vão produzir “democratas”. Ela faz-se no debate social, um debate que precisa de gente competente. Há muito intelectual moçambicano que perde o seu tempo com críticas aos “ladrões” e “incompetentes” e dedica pouco do seu tempo a reflectir estas questões mais importantes e cruciais para a consolidação da democracia.
A Internet está infestada de jovens comprometidos com o país, mas que perdem o seu tempo e energia com pseudo-análises que não levam o país adiante. Muitos deles acreditam simplesmente no que pensam e julgam que isso os qualifica para participarem no debate público de ideias. Julgam que têm sentido democrático profundo por serem capazes de acusar alguém de não ser democrata. Abordam o país a partir de slogans e não se dão ao trabalho árduo de estudar os fundamentos daquilo que eles dão por adquirido. Uma visita rápida ao “Wikipedia” é tudo quanto necessitam para emitir uma opinião. Têm um quadro analítico simples na cabeça: o mundo (moçambicano e africano) é feito dos bons (eles e todos os que não estão no poder; ou eles e os que estão no poder) e dos maus (vice-versa).
Os méritos individuais de qualquer que seja o assunto não interessam. O primeiro-ministro ainda não exonerou fulano de tal? É “mamparra”. As forças policiais sul-africanas massacraram mineiros? São “mamparras” também.
Sem querer ser demasiado polémico, gostaria, apesar de tudo, de lamentar a ausência dos nossos juristas seniores – portanto, os que se encontram no Tribunal Supremo e no Conselho Constitucional – do debate público dos fundamentos da nossa ordem política. Fazem falta no país revistas jurídicas onde os juristas discutem estas questões. Fazem falta intervenções qualificadas de juristas no debate de questões desta natureza nos meios de comunicação de massas. Não tenho conhecimento de nenhum trabalho de reflexão crítica de sentenças passadas por juízes, no sentido da sua articulação com os nossos direitos. Faz falta uma ideia da noção que cada um dos nossos mais altos magistrados tem da ordem constitucional. Quando um deles é nomeado, o que ficamos a saber é se é da Frelimo ou não; mas o que ele pensa sobre este e aquele aspecto da administração da justiça e da garantia dos direitos constitucionais está no segredo dos deuses.
Portanto, alguma da mediocridade das nossas discussões está relacionada com o silêncio deste pessoal. Recentemente, sugeri durante uma discussão numa turma do mestrado em Direitos Humanos, Governação e Democracia na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, que todo o juiz dessas instâncias fosse convidado a escrever uma redacção a explicar por que acha que o direito à liberdade seja mais importante do que o direito a ter sorvete todos os dias. Espero viver o tempo necessário para vir a ler um texto desses.
É por isso, porém, que a discussão sobre o lenço é uma oportunidade. A nossa democracia anda com sorte porque ela vai produzindo temas que nos podem permitir discutir questões sérias. É nossa responsabilidade aceitar o desafio. Responsabilidade cívica.
A proibição do lenço nas escolas não faz, para mim, absolutamente nenhum sentido. Se for para preservar a laicidade do Estado, peca por ser inconsistente. Conforme escrevi mais acima, nenhuma funcionária pública devia usar lenço no exercício das suas funções. Se for por razões higiénicas ou de disciplinarização das crianças, como aparentemente foi o raciocínio de Samora Machel, então isso tem de ser deixado ao critério das escolas ou das direcções provinciais de educação, as quais por sua vez têm de estar mais atentas à vontade dos encarregados de educação. O mais difícil nesta questão seria permitir o lenço e proibir o véu.
Contudo, se a laicidade do Estado for interpretada de maneira a não permitir que nas instituições públicas o argumento religioso tenha legitimidade, então, aí teríamos uma maneira de abordar o assunto. Se o código de indumentária duma determinada escola pública exige certo traje, então o argumento religioso não pode vingar. Só que, para isso funcionar bem, os encarregados de educação teriam de ter a possibilidade de influenciar a redacção desse código. Ou algo parecido.
Democracia não é coisa fácil, não. Pior quando é na base de slogans, tipo para inglês ver. Locke e Mill, que eram ingleses, morreram há muito tempo. Os problemas continuam. É nossa responsabilidade cívica reflectir esses problemas. São eles que dão substância à democracia. Neste sentido, a questão até nem é de saber quem matou o gato. A questão é: porque não é da nossa conta que alguém goste de carne de gato, desde que não seja o nosso gato?
  • E. Macamo, Sociólogo

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