terça-feira, 28 de agosto de 2012

Guerra Civil ou Guerra de Desestabilização? (1ª Parte)

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A Sentença de Londres
Em Janeiro de 1991, um tribunal de Londres foi chamado a deliberar sobre a natureza do conflito armado que opunha o governo de Moçambique à Renamo. Em causa estava uma queixa apresentada por seis empresas gasolineiras do Zimbabué contra a seguradora Lloyds, pelo facto desta ter recusado indemnizá-las por perdas sofridas como consequência da sabotagem, pela Renamo, do oleoduto Beira-Feruka e do complexo de tanques de combustíveis situados na zona portuária da Beira. A seguradora britânica alegou em sua defesa que a apólice de seguros em nome das gasolineiras “excluía danos causados por guerra civil”.

Não obstante o Acordo Geral de Paz ter sido negociado e assinado entre moçambicanos, persiste a linguagem dos anos da guerra, o que augura maus sinais para o processo de reconciliação nacional. A par do regozijo publicamente manifestado por figuras arcaicas do regime no poder, face à crise que assola a oposição nacional, e do conceito sui generis de democracia bravateado pelo timoneiro da mobilização e propaganda do partido dirigente, em Sirte surgiram recentemente vozes destoantes que nos transportaram aos amargos anos do rancor e da exprobração. Reagindo a um relatório do Mecanismo Africano de Avaliação de Pares (MARP), o presidente da República considerou o conflito, cujo fim ele próprio negociara com irmãos seus em Roma, não como uma guerra civil, mas “uma guerra de agressão que visava desestabilizar Moçambique, e que foi movida pelo então sistema do apartheid usando os seus tentáculos”. Posição idêntica foi defendida no mesmo encontro por Graça Machel, para quem “o país não teve nenhuma guerra civil, mas sofreu uma acção de agressão movida pelo regime do apartheid.”
Quando surge a oportunidade de se analisar, em fóruns independentes, as verdadeiras causas do conflito surgido em Moçambique após a independência, as conclusões são necessariamente outras e coincidentes com as defendidas por pessoas como o embaixador queniano, Bethuel Kiplagat, uma das figuras-chave do processo negocial que conduziu à assinatura do Acordo Geral de Paz entre o governo da Frelimo e a Renamo. Uma análise, despida de condicionalismos de qualquer espécie, do conflito armado surgido em Moçambique após a independência teve como palco um tribunal de Londres em que um juiz foi chamado a deliberar sobre a natureza desse conflito. A questão tinha como pano de fundo as acções de sabotagem levadas a cabo pela Renamo contra o oleoduto Beira-Feruka e o complexo de depósitos de combustível situados na zona portuária da Beira entre Julho de 1982 e Janeiro de 1983.
Em face dos prejuízos sofridos como resultado dos actos de sabotagem, seis empresas gasolineiras do Zimbabwe pretendiam ser indemnizadas por perdas e danos sofridos, ao abrigo de uma apólice de seguros que haviam assinado com a Lloyds. Esta seguradora, porém, rejeitou o pedido de indemnização pelo facto da apólice excluir “perdas, danos ou despesas causadas por guerra, guerra civil, revolução, rebelião, insurreição ou desacatos civis daí resultantes, ou qualquer acto hostil levado a cabo contra ou por uma potência beligerante”. Por acreditar que o conflito armado entre a Renamo e o governo moçambicano não se enquadrava no âmbito da cláusula atrás citada, as seis gasolineiras moveram uma acção contra a seguradora Lloyds junto de um tribunal de Londres. Em jogo, estava um pedido de indemnização por perdas no montante de 5 milhões de dólares americanos.
A Posição do Juiz Saville
Tendo analisado os factos apresentados pelos advogados das gasolineiras zimbabueanas e da Lloyds, o Juiz Saville considerou, em sentença proferida a 26 de Fevereiro de 1991, que a seguradora britânica não tinha o dever de pagar a indemnização exigida uma vez que a apólice de seguros excluía prejuízos causados por guerra civil.   
Na sua sentença, o Juiz Saville começou por salientar que o que estava em causa era determinar se a posição defendida pela seguradora Lloyds tinha fundamento, isto é, se “as perdas estavam excluídas pela Cláusula 3.1 da apólice por terem sido causadas por guerra civil, rebelião ou insurreição.” Referindo-se concretamente à Renamo, o Juiz Saville declarou que “nas presentes circunstâncias, a questão central é se a Resistência Nacional Moçambicana (que de ora em diante passarei a designar de Renamo) estava envolvida numa guerra civil, rebelião ou insurreição em Moçambique, e se levou a cabo os ataques contra o oleoduto e os tanques de combustíveis como parte desse envolvimento”.
Apoiando-se no processo jurídico “Spinney vs Royal Insurance”, ocorrido em 1980, o Juiz Saville definiu “guerra civil” como sendo “uma guerra com a característica especial de ser civil, ou seja, de ser interna, em vez de externa”. De seguida, Saville fez um resumo da história moçambicana, tendo referido que “em
1962, a
Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) havia sido fundada” e que “a partir de 1964 esse movimento anticolonial recorrera à violência para alcançar os seus fins, e que tivera de fazer face a medidas igualmente violentas por parte do governo colonial”. Com a proclamação da independência em 1975, acrescentou Saville, “o movimento Frelimo, que passara a partido dirigente, avançou paulatinamente naquilo por si descrito como o instituição de um Estado marxista-leninista”. Na óptica do Juiz Saville, “o governo da Frelimo iniciou um processo de transferência obrigatória de pessoas das suas zonas tradicionais para aldeias comunais; criou os chamados ‘campos de reeducação’ onde viria a ser encarcerado um largo número de pessoas que por uma razão ou outra haviam entrado em divergências com as novas autoridades; e que a liderança da Frelimo era vista por alguns como sendo dominada por pessoas oriundas do sul de Moçambique, com exclusão de outros grupos étnicos do país”.
Depois desta breve caracterização do regime instaurado em Moçambique após a independência, Saville afirmou que, como consequência da política seguida por esse regime, “um número considerável de moçambicanos (dentro e fora do país) passou a ter uma postura contrária ou de oposição ao governo da Frelimo e àquilo que ele punha em prática”.
Política Externa
A par dessa situação, salientou o Juiz Saville, havia ainda a questão das “relações internacionais que eram desvantajosas para Moçambique, nomeadamente com a Rodésia (até 1980) e com a África do Sul”. Referindo-se concretamente à política externa seguida pelo nosso país após a independência, o juiz britânico recordou que o governo da Frelimo “apoiava a guerrilha do ZANLA, e na realidade a Constituição de 1975 impunha expressamente a Moçambique a obrigação de ‘solidariedade para com os movimentos de libertação’. Em Março de 1976, o governo da Frelimo encerrou as fronteiras com a Rodésia, tendo aplicado sanções.” Um dos resultados desta media, declarou Saville, “foi Moçambique ter sofrido ainda mais danos económicos dado que até então havia um tráfego considerável e de valor comercial entre a Rodésia e (em particular) o porto da Beira”.
Debruçando-se sobre a política seguida por Moçambique em relação à África do Sul, o Juiz Saville considerou que “desde o princípio, o governo da Frelimo também havia declarado o seu apoio ao Congresso Nacional Africano no conflito que opunha este movimento de libertação às autoridades sul-africanas, e que pelo menos concedera apoio tácito a esse movimento. Isto (e a orientação marxista-leninista expressa pelo governo da Frelimo) prejudicou bastante as relações entre Moçambique e a África do Sul, as quais viriam a piorar consideravelmente quando a Rodésia deu lugar ao Zimbabué.”
No decurso destes acontecimentos, prosseguiu o Juiz Saville, “estavam as actividades da Renamo que tiveram início por volta de
1976.”
Com rigor histórico, Saville declarou que “nos finais de 1980, havia-se registado um aumento das actividades da Renamo” numa “vasta área do país, em que as redes rodoviárias, ferroviárias, de água e electricidade destinadas à Beira foram frequente e seriamente afectadas. As tropas governamentais foram alvo de emboscadas, e técnicos estrangeiros raptados. Entre Julho de 1982 e princípios de Janeiro de 1983 (que é o período em que ocorreram os actos de sabotagem que deram azo à presente queixa) registaram-se ataques contra comboios e linhas de alta tensão, e ao longo desse período houve cerca de 40 incidentes, apesar das medidas tomadas pelo governo da Frelimo e que incluíam o uso em larga escalada das Forças Armadas.”
Depois de ter feito este resumo dos acontecimentos em Moçambique, o Juiz Saville referiu que “a controvérsia reside na questão de se saber se as actividades violentas da Renamo (incluindo os relevantes actos de sabotagem) constituíam tentativas de uma sublevação interna organizada para derrubar o governo da Frelimo, ou, de facto, manifestações de uma guerra civil. Os acontecimentos em Moçambique (incluindo o estatuto e as actividades da Renamo) são questões de considerável significado político. Como era talvez de esperar, um das consequências que daí advêm é que muito dos que têm falado ou escrito acerca desses acontecimentos foram influenciados por necessidades ou simpatias políticas, e um facto que é lamentável é que tais influencias muitas vezes tendem a fazer com que a verdadeira posição seja ocultada, escamoteada ou até mesmo deturpada.”

A Apólice Seguros

A apólice de seguros passada pela Lloyds em nome das seis empresas gasolineiras continha as seguintes cláusulas:
Riscos Cobertos pela Apólice
    1.     Salvo o disposto nas Cláusulas 3 e 4 adiante referidas, a presente apólice de seguro
            cobre perdas ou danos infligidos ao objecto segurado, e que tenham sido causados por:

1.1.           Grevistas, trabalhadores em situação de lock-out (ou greve patronal), ou pessoas participantes em distúrbios laborais, motins ou tumultos civis;
            1.2.     Qualquer terrorista ou qualquer pessoa agindo por motivos políticos.
Exclusões
   3.      Em nenhum caso, deverá a presente apólice de seguro cobrir ...
3.10.       perdas, danos ou custas causadas por guerra, guerra civil, revolução, rebelião, insurreição, ou conflitos civis daí resultantes, ou quaisquer actos hostis por ou contra uma potência beligerante...

Devido à relutância do governo do Zimbabué em autorizar pagamentos em moeda estrangeira, as gasolineiras viram-se forçadas a não obter uma apólice de seguros que incluísse o disposto na Cláusula 3.10. Factores de ordem financeira, relacionados com o deficit orçamental do Zimbabwe também ditaram a não inclusão dessa cláusula. De facto, a eventual inclusão da Cláusula 3.10 tornaria a apólice bastante dispendiosa em face da alta situação de risco prevalecente, resultante do conflito armado em Moçambique entre forças governamentais e da Renamo.

O Julgamento
A sessão de abertura teve lugar a 16 de Janeiro de 1991 no Tribunal de Primeira Instância (Divisão Comercial) na cidade de Londres. A acção contra a seguradora Lloyds foi proposta por um total de seis queixosos:
National Oil Company of Zimbabwe (Private) Limited   1° Queixoso
Shell Zimbabwe (Private) Limited                                     2° Queixoso
B.P. Zimbabwe (Private) Limited                                      3° Queixoso
Mobil Oil Zimbabwe (Private) Limited                              4° Queixoso
Caltex Oil Zimbabwe (Private) Limited                            5° Queixoso
TOTAL Zimbabwe (Private) Limited                                6° Queixoso
Ambas as partes recorreram ao auxílio de peritos em questões moçambicanas, designadamente o Dr. Tom Young, da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos (SOAS ) da Universidade de Londres, pela parte queixosa, e o Dr. André Thomashausen, jurista e professor de direito internacional comparado da Universidade da África do Sul (UNISA). Para além do testemunho de Young, os advogados da parte queixosa fundamentaram os seus argumentos em material obtido junto de fontes que reflectiam ou eram favoráveis à linha oficial do governo da Frelimo, como por exemplo o serviço de notícias governamental, AIM, e a publicação britânica, “Africa Confidential”.  O depoimento do Dr. Young, em defesa da tese de que o conflito armado em Moçambique  não podia ser considerado de guerra civil atingiria proporções controversas dada a contradição flagrante entre aquilo que declarou perante o tribunal, e o teor de um trabalho por si assinado antes do julgamento, sob o título, “The M.N.R./Renamo: External and Internal Dynamics” no qual ele próprio defendia a tese de que “tratar a Renamo simplesmente como ‘fantoche’ da Rodésia ou da África do Sul era ser-se levado pela propaganda simplista e errada do governo da Frelimo, dos seus apoiantes e simpatizantes”. Um outro aspecto que ditou a derrota da acção judicial visando demonstrar a não existência de uma guerra civil em Moçambique, foi o facto dos advogados das empresas gasolineiras terem dado realce ao livro de memórias de Ken Flower, ex-director da CIO rodesiana. No livro, “Serving Secretely”, Flower adulterou o teor de um “relatório secreto” sobre os “Flechas e a Formação da Resistência Nacional Moçambicana” com o objectivo expresso de retirar qualquer legitimidade a este movimento. Com a data de Abril de 1974, o relatório inserido no livro de Flower relata factos que até então não haviam ainda ocorrido, designadamente a transferência de poderes para a Frelimo por parte Estado português e a existência de um Estado moçambicano independente há já cinco anos. Basta referir o facto de que o golpe de Estado que derrubou o governo de Marcelo Caetano em Lisboa ter ocorrido posteriormente à elaboração do relatório em referência.
Canal de Moçambique – 30.07.2009
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